O lugar dos pontos
“Dilemas existenciais, como a vida e a morte, ocupam lugar especial na poética das canções sagradas.”1 Para o povo de santo, o som, a palavra falada ou cantada, a expressão corporal e os objetos-símbolos são valores transmitidos pelos mais velhos para os mais novos por meio da vivência e do esforço conjunto que dá continuidade ao aprendizado. No xirê2, demonstra-se e celebra-se esse modelo paradigmático compartilhado: nele, o encontro do “lugar dos pontos equidistantes entre o puro sensível e o puro inteligível”3 conduz o axé, reativa a memória, sustenta a dinâmica da comunidade-terreiro e ritualiza suas histórias.
Semelhante em sua força atávica, o balé A Sagração da Primavera4, de Igor Stravinsky, encena o sacrifício aos deuses da terra para ofertar a colheita à comunidade. Ao tomar a primavera como caminho – do repouso à fertilização e dessa à frutificação –, entende-se que a partilha dos frutos decorre da cooperação que a sustentou. No vocabulário da exposição, Àjọ̀ designa o movimento que pede concessões para que a celebração se realize no coletivo.
Nesse sentido, a primavera não só orienta conceitualmente este trabalho de Oto Ferreira como também é a estação a acompanhar o período expositivo de Àjọ̀. Reconhecendo afinidades rítmicas entre o balé russo e os iorubás, o artista nomeia as telas – em tons de ipês-damasco, quaresmeiras e amoreiras – a partir dos movimentos da sagração. Essa referência musical transborda para as esculturas, e a polirritmia stravinskiana é transposta à madeira, na qual grava acentuações assimétricas e sobreposições de staccato5 e titula as peças com os odús do merindilogun6. Mais do que um contraponto às classificações culturais hegemônicas, a atuação de Ferreira como artista, luthier7, violinista e Opa Otum8 de seu ilê articula a dimensão teúrgica de A Sagração da Primavera à cadência iorubá, assentada no diálogo entre escultura e pintura e a composição que delas se forma.
Há, ainda, uma correlação regida nas cerimônias musicais conduzidas pelo maestro e o alagbe, um com a batuta e o outro com o aguidavi. Nesse cenário, ambos chamam as entradas, zelam pelos instrumentos e intermedeiam a relação entre pessoas e divindades. Na produção de Oto Ferreira, essa regência se traduz no ofício: formões, goivas, facas, serras, malhos, pincéis e espátulas que assumem a função de batuta/aguidavi, ritmando cortes e camadas que deificam esculturas e pinturas. Sobre os materiais – coletados em calçadas, praças e parques –, o artista incorpora a dimensão representativa pública quando a inscreve como objeto de apego íntimo.
Como uma sublevação material do que já foi e ainda é orgânico, os troncos são amplificados por suas pinturas, difratados pelos padrões melódicos e ritmos sincopados marcados por Oto Ferreira. São paisagens enquadradas como possíveis fundos desse lugar etéreo, feito de densos bocejos separados por linhas, formas e pontuações, firmado na exposição Àjọ̀ como a jornada entre pontos, em que na regência se encontra o Orun9 e o Aiyê10.
NOTAS
¹ Trecho de O Banquete do Rei – Olubajé (2005), de José Flávio Pessoa de Barros, p. 56.
² Palavra de origem iorubá que designa festa, brincadeira.
³ Trecho compreendido pela leitura de Totemismo Hoje (1980), de Levi-Strauss.
4 O balé, do compositor Igor Stravinsky, estreou em 29 de maio de 1913, no Teatro dos Campos Elísios, Paris. Foi originalmente produzido pela companhia de Ballets Russes, coreografado por Vaslav Nijinsky, com cenografia e figurino de Nicholas Roerich. Seus movimentos são divididos em duas partes: A Adoração da Terra e O Sacrifício.
5 Quando numa sequência, cada nota rápida é nitidamente destacada das outras.
6 Jogo de divinação feito de 16 búzios utilizado pelos iorubás.
7 Artesão especializado na fabricação e no reparo de violinos e de outros instrumentos de corda.
8 Braço direito do babalorixá Mario de Oya, do Ilê Asé Omo Oya Tology.
9 Palavra de origem iorubá que designa a dimensão da existência genérica e do mundo habitado pelos Orisà, povoado, ainda, pelo espírito dos fiéis e de seus ancestrais ilustres.
10 Palavra de origem iorubá que designa o mundo, a terra, o tempo de vida e, mais amplamente, a dimensão cosmológica da existência individualizada, por oposição a Orun.