Fefa Lins

Fefa Lins

n. Recife, PE (1991)

Fefa Lins é artista visual pernambucano, formado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). As inquietações do artista estão intimamente ligadas à sua vivência enquanto pessoa dissidente do sistema sexo-gênero.

Tendo como ponto de partida a reflexão sobre afetos e desejos, Lins faz uso de técnicas tradicionais de pintura a óleo associadas a processos digitais de composição para investigar outras possibilidades para corpos e sexualidades localizadas fora das normas hegemônicas.

Desde 2016, o artista participou de várias exposições coletivas no Brasil, e teve sua primeira individual em Recife, intitulada “Tecnologias de gênero”. Lins foi indicado ao Prêmio PIPA em 2022.

"4 caminhos para conhecer Fefa Lins", por Daniel de Andrade Lima, 2021

Um mapa de momentos – de desenho e de pintura

Quais memórias carregamos de momentos que, acreditamos, são marcantes para que sejamos quem somos?

– Cercado por quadros inacabados em seu apartamento no Recife, Fefa Lins pinta uma natureza morta. Enquanto a maioria dos quadros do artista envolve um longo processo de trabalho centrado em retratos, este foi feito em poucas horas e não figura diretamente um corpo humano.

As manchas que formaram a pintura tornam cognoscíveis uma caixa de cigarro, uma vela, uma bomba de asma, uma fruta: vestígios dos usos de algum corpo. Como se tornou comum em sua obra, afinal, Fefa parte de uma composição que o faz repensar as suas próprias práticas. Horas mais tarde, um vídeo percorrendo os trechos da pintura figurariam em seu perfil no Instagram —
“estudos de equilíbrio e derretimento ao som de Kamasi Washington; a natureza morta como eu”.

– Em algum momento dos 2010, uma professora do curso de arquitetura da UFPE recebe um trabalho do qual descontaria, de cara, dois pontos. Era um desenho feito com esquadros e escalímetro no papel manteiga. Como molho, inclinações van goghianas o reconfiguravam: céu laranja, grama avermelhada e casa azul, coloridos por lápis de cor. Anos mais tarde, o interesse de compor através de cores reincidiria; o desenho técnico, não. Arquitetura, me conta Fefa, não é necessariamente um curso para quem gosta de desenhar.

– Em algum lugar de Casa Forte, pinturas sacras decoram uma casa de classe média: uma santa ceia na sala, um Jesus branco próximo à cama dos pais. Em seu quarto, Fefa adolesce desenhando — entre personagens de anime e o interesse pela pintura — um retrato para sua namorada.

– No auge do Facebook, retratos são trocados no grupo “Selfless portraits das minas”, a partir de sorteios anônimos que pareavam participantes. Entre desenhos de si e de outras pessoas, Fefa passa a usar tinta aquarela e, enquanto fabula curvas e ângulos, intercala os traços grafitados com as manchas da tinta. Pintar e desenhar, parece, fazem corpos de maneiras diferentes.

 

Pintura-performance

Quais poses do trabalho de Fefa são imitáveis? Quais são familiares? Quais não?

Sentado sobre a sua cama, Fefa Lins olha para o celular. O aparelho está conectado à sua câmera, posicionada sobre um tripé à sua frente. Olhando para o smartphone, Fefa vê o que vê a câmera. Nu, ele abre as pernas e olha a sua própria buceta. Muda, talvez, a posição do rosto, reorganiza os membros, organiza o tronco, faz escolhas sobre o quão fechada deve ser sua cara. Olhando pelo celular, que reflete a câmera, que aponta para si, ele tira a foto. Horas mais tarde, no computador, vê a própria imagem: muda luzes e cores, pinta e cola digitalmente. Ele transforma o fundo, se apropria de materiais da internet, de outras pinturas e de fotos suas.

A foto do seu corpo — que partia de uma composição entre gestos encenados e moldados pelo cotidiano — é recomposta no digital. Tempos depois, a imagem estaria projetada sobre uma tela em que Fefa iniciaria um processo instaurador de crises: pintar e repensar mais uma vez a si até que a imagem que pinta pare de provocá-lo a pintar mais. Assim, o corpo de Fefa é moldado (no cotidiano), recoreografado (por ele mesmo), triplamente computado (no celular, na câmera e no computador), reformulado (no Photoshop) e refeito (no ato prolongado de pintar). Cada um desses passos, ele me diz, fala algo para si.

Investigar a própria performance é um hábito antigo para Fefa, que, desde a infância, se tornou proficiente em refletir sobre o seu comportamento a partir de como era regulado em termos de gênero. As poses, os objetos, as ficções e suas relações amorosas aparecem na pintura na medida em que apresentam e expandem seu corpo. Assim, como pontua, “a imagem é a própria gestualidade que vai puxar o tom do quadro”. O corpo dele existe antes da imagem, mas também durante e depois, e, ele diz, o pensamento da pintura está sempre presente no seu processo, mas o trabalho o excede.

Ao falar de sua prática, não é à toa, então, que Fefa recorra a termos como performance, montagem e manipulação digital. Sua pintura é multiplamente performática; não só porque encena o seu corpo, mas porque sublinha que pintar é um ato em que o performer está no fazer a si e ao quadro. Ele me lembra que ser pintor nunca foi “só pintar”: sempre envolveu determinadas técnicas de ver, tanto no uso artístico da câmara escura quanto no olhar hegemonicamente treinado de muitos pintores. Ver e aparecer são atos, e, certamente, se fazer (no cotidiano e na arte) é um processo que precisa articular regulações e fabulações. A pintura de Fefa, então, parece ser uma pintura-performance, não só porque parte do gesto e porque convida uma sucessão de atos seus, mas porque é uma aparição de si mesmo que transforma quem pinta e, talvez, quem vê.

 

Um desejo de pintar o desejo

Em que momentos das nossas vidas desejar e elaborar se borram?

Depois de mais de uma hora de entrevista, pergunto a Fefa Lins qual o seu interesse em retratar outras pessoas, quando a maior parte da sua obra é voltada para as auto-narrativas. Sem pensar muito, cogita: “talvez para falar de quem eu sou dentro de uma relação, quem eu sou dentro desse coletivo”. Com um pouco mais de hesitação, adiciona que às vezes só quer pintar “aquele rostinho lindo”. Minutos antes, Fefa falava sobre como descobriu o prazer de manipular a tinta na própria exploração da pintura, especialmente depois de fazer cursos intensivos em 2015. As técnicas com as quais Fefa trabalha no pintar envolvem manufaturar camadas, preencher o quadro com tons diversos, misturar materiais e constituir imagens por manchas grossas e finas, criando trechos e detalhes, passeando pelas partes mais figuráveis e pelas mais abstratas de cada rosto, corpo e lugar. Ele empreende prazer no labor de pintar, criando a imagem já materialmente, com tamanho e peso, “enquanto um objeto mesmo, algo que existe”, como diz. São imagens que são feitas com seus gestos e são, para ele, táteis. O artista me conta sobre um prazer erótico que aparece quando está trabalhando com as tintas e explica que muitas vezes os quadros voltam para ele em momentos sexuais de seu cotidiano. O prazer estético e o prazer sexual compartilham muita coisa em comum e os dois bagunçam o desejo de pintar com o desejo que emerge da pintura. Às vezes, pintar também é desejar um rostinho lindo.

 

Comunicar uma dissidência

O que queremos ver quando buscamos ver os outros?

“O trabalho não é meu corpo, o trabalho é uma reflexão que eu tenho sobre o meu corpo, é uma forma de interpretar que poderia ser sobre outros corpos, mas eu me sinto confortável com o meu”, conta Fefa Lins. Nas frases anteriores, ele costurara os problemas das pinturas que olham para mulheres a partir de desejos patriarcais, os anseios em torno de acabar parecendo
muito autocentrado e os limites de querer dar conta de como outros corpos podem aparecer. A reflexão condiz com uma preocupação recorrente: a de que a sua profissionalização enquanto artista tem a ver com uma compreensão do próprio trabalho enquanto uma forma de comunicação, refletindo sobre paradigmas da arte. Assim, sua investigação parece atuar sobre como as regulações sociais e estruturais se atualizam no seu corpo singular.

Mais do que se vincular a uma ideia do que seriam representações de um corpo transmasculino não-binário, Fefa compreende que voltar-se para si mesmo é parte de sua dissidência: “O que a gente produz com isso é algo que é questionador pra gente também: você faz o trabalho e depois ele te conta um bocado de coisa que você não sabia ainda”. Porque Fefa olha para seu próprio corpo, consegue, com propriedade, comunicar as vinculações entre expressão de gênero, sexualidades, desejos, prazeres e sofrimentos, que ressoam em outros corpos. O seu trabalho, então, mais do que se ater conceitualmente a temas, parece comunicar — no sentido de projetar, tornar comuns — seus afetos e conflitos, que, daí, já não são só seus. É isso que me permite, por exemplo, sendo eu alguém que desvia de maneira tão diferente da de Fefa, olhar para os seus quadros e, ainda, encontrar neles algum tipo de acolhimento para os meus próprios conflitos.

Lista completa disponível no CV