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23.08-11.10.2025

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Marco Paulo Rolla, Ad Minoliti, Mariela Scafati 23.08-11.10.2025
Texto curatorial: Marina Schiesari

“mmm”

Na casa burguesa de Cortázar, um ruído inominado se infiltra e, pouco a pouco, conduz seus moradores ao confinamento em espaços cada vez mais restritos da morada, herdada e mantida por hábitos monótonos. Os residentes veem sua quietude rompida pelo som que os encurrala e expulsa do conforto – movimento que já estava inscrito no próprio título do conto, “Casa Tomada”¹. 

O que, afinal, teria sido capaz de removê-los? Poderiam ser tradições autoritárias de um passado mal resolvido, posturas modernas a exigirem condutas ou simplesmente lutas sociais a adicionarem perspectivas. Seja qual for a hipótese, o encontro com o desconhecido não foi tentado. Se o que surgiu como incontornável fosse enfrentado, outra possibilidade se revelaria – não no mero abandono de seus costumes, mas no confronto com outras ordens e outros métodos. Sem saber se isso traria ganhos ou perdas, instaurar-se-ia uma forma de sociabilidade deslocada das atribuições preestabelecidas, em que a força externa que gradualmente ocupava o espaço demarcado fosse a mesma a romper-lhe o contorno ou a borrar-lhe os limites.

Mesmo se o incômodo partisse de dentro, como em “A Vegetariana”², de Han Kang, em que já se anuncia a origem da questão, poderia resultar em uma retomada equivalente ao “outro lado da casa”. A repressão à liberdade da protagonista, de voz quase sempre ausente, exceto quando conta seus sonhos e pesadelos, é mediada pelo olhar alheio e encontra no silêncio a reivindicação de sua autonomia corporal que, por meio de gestos sucessivos – primeiro no alimentar, depois no existencial –, culmina no ato radical de querer tornar-se planta. Assim, enquanto “A Vegetariana” antecipa a origem do conflito, “Casa Tomada” marca o seu desfecho; mas, em ambos os casos, a trama reside no processo, no movimento entre os ruídos domésticos e os gestos corporais que se expandem até o ponto em que o espaço se deixa delimitar.

 

O íntimo atravessado pelo público e o familiar convertido em estranho foram escolhas de narrativa a estruturar a exposição “mmm”, baseada na fronteira da linguagem, que, embora silenciada pelo vocabulário, é intensificada como vibração ressonante – provada ou hesitada, refletida ou precipitada, concordada ou contestada – e propagada no espaço pelas obras de Ad Minoliti, Mariela Scafati e Marco Paulo Rolla a refratarem os estímulos pseudossinestésicos de um corpo social complexo. Seus trabalhos, em conjunto, retomam binarismos cotidianos por meio de experimentações formais que desnaturalizam o real e naturalizam o insólito.

 

Tal qual uma ficção construída pela realidade, o mural de Minoliti se desenvolve no espaço com a lógica proliferante dos fungos; as articulações monocromáticas de Scafati equiparam a sedução entre sujeito e objeto; o que também é tratado no corpo de Rolla enquanto suporte e instrumento de possíveis abstrações; percurso que Minoliti retoma ao geometrizar e compor com a figuração. Nesse diálogo, dicotomias explícitas são tensionadas entre o real e o imaginário de Minoliti e Scafati; a modernidade entrópica e a ordem natural de Minoliti e Rolla; a funcionalidade e a disfuncionalidade na dominação e subordinação de Rolla e Scafati. Mesmo com uma paleta de cores ternas e aparentes frivolidades, estes artistas estão a pensar no tecido coletivo, em opções às compreensões culturais impregnadas à “Casa Tomada” ou ao meio da “Vegetariana” — ora ocupadas e silenciadas, ora sujeitas ao “outro lado da casa”, mas sem liberdade na convivência.


Mais do que aproximações, há o contágio das pesquisas destes artistas, facilitado pela quebra da moldura na qual as oposições normativas deixam de operar como polos fixos para se tornarem fronteiras móveis, cruzadas e mescladas. É justamente aqui que a formulação de Lygia Pape na exposição EAT ME = A Gula ou a Luxúria?³ ganha pertinência: “Espaço interno e externo confundindo-se e nutrindo-se um ao outro”. Sua proposição não apenas descreve a diluição entre corpo e ambiente, mas também inclui o que se passa nas práticas de Minoliti, Scafati e Rolla – mecanismos esses que, independentemente da escala, individual ou coletiva, reiteram a potência de deslocamentos metabolizados como realismos fantásticos intermodais, capazes de engendrar proposições estéticas e políticas em relação ao meio.

 

¹ Conto de Julio Cortázar, publicado em 1946 na revista literária Anales de Buenos Aires, dirigida por Jorge Luis Borges.

² Romance publicado originalmente na Coreia do Sul em 2007 e lançado no Brasil em 2013.

³ Exposição realizada em 1976 na Galeria Arte Global, em São Paulo – a única mostra do espaço a ser censurada.

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