De um adensado abstrato de manchas, em que se acumulam nuances de tinta acrílica, surgem traços que definem cenas cotidianas. Uma personagem com ornamentos femininos se olha num espelho sem reflexo, em O buraco no espelho (2017). Em outro trabalho, uma mão segura um pequeno fogo de artifício, daqueles que não duram mais do que alguns segundos e produzem estrelas douradas. Na obra, as explosões são retratadas em cor profunda, cujo título confirma tratar-se de um Fogo Escuro (2017). As pinturas, que fazem parte da série Transmutações, retratam de forma sintética a matéria vertiginosa de crises e conflitos, mas também de transformações e mistérios que compõem a mostra Abismo Contínuo, de Marco Paulo Rolla. Como um fogo que mal incendiou e já se apagou, sem brilho ou calor, como um objeto que acabou de se quebrar, como um corpo que se desequilibrou, as obras evocam os momentos de desarranjo e inconformidade de que parecem ser feitos nossos dias. E eles não cessam, eles se aprofundam indefinidamente.
No entanto, e por isso estamos vivos e insistimos até em ser alegres, há no instante limiar das instabilidades o tempo da recriação. Uma obra como O nascimento do amor (2017) nos lembra disso: é também do vórtice da vida que brota a planta, que surge o gozo, que desata a gargalhada, que a dor se transforma em força. Em bronze, a escultura replica o corpo do artista, que lhe serviu de molde. Adornado em seus pés por aparelhos eletrônicos já obsoletos, o homem tem a cabeça elevada, os olhos fechados como num êxtase, o sexo ocultado pelas mãos. Do peito, um galho irrompe. O sujeito ali se apresenta desatrelado das próteses tecnológicas, enquanto atravessado de natureza. Remete a toda uma tradição escultórica, evoca mitologias e ao mesmo tempo está incrustado no presente. O corpo, na obra de Marco Paulo Rolla, parece atuar como entidade detonadora de processos de transformação ou como meio catalisador de transmutações. Ele é o molde da escultura, além de tema dos trabalhos, o condutor da performance, o motivo da pintura, a razão de desenhos, colagens, estudos. Do ponto de vista conceitual, para o artista o corpo é o agente que media a matéria dos dias e o sopro dos sonhos, que conecta espiritualidade e imanência, que aproxima a subjetividade individual da experiência coletiva.
Quase duas décadas antes, em obras como A meia [The sock] (1998), objetos surgiam como elementos metonímicos da presença desse mesmo corpo que, como se feito de inconformidade e segredo, nunca se revelava por inteiro. A meia assinalada pelo título toma a porção central da pintura, calçada em perna e braço pintados sobre pele sintética que desce do topo da obra, cuja singularidade só não é maior que o volume de pelo que se projeta para fora do quadro, tocando ligeiramente o chão. Seja pela continuidade do corpo humano ocultado, seja pelo adereço que invariavelmente remete a outra natureza de bicho (ou de coisa), há excesso e estranhamento, como se qualquer manifestação da vida ordinária fosse também a expressão do extraordinário, algo que acontece também em A xícara (1998). Na escolha dos objetos e na tipologia das coisas está circunscrito um vocabulário que remete a uma vida burguesa, urbana, mas que ao longo da trajetória do artista não deixa de ser entremeado por experiências naturais.
Marco Paulo Rolla atua desde a década de 1980, com uma produção cujo fôlego se renova a cada torção geracional. É fortemente identificado com a prática performática, o que encontra razão no fato de ser um dos mais talentosos e profícuos artistas brasileiros nesse campo. Cama, mesa, escada (2010), registro em vídeo de uma ação realizada na 29a Bienal de São Paulo, deixa ver um pouco desse acervo. Sua excelência, no entanto, não se restringe a essa linguagem. O corpo de pinturas, esculturas, desenhos, vídeos, colagens, gravuras mostra um artista que produz gestos artísticos contundentes, não constrange experimentações e se movimenta por temas de grande abrangência – trata de relações humanas e institucionalidade, faz confrontar tanatos e eros, fala de desejo e solidão, de natureza e metafísica, sempre a partir de aspectos agudos, da incerteza ou da especulação. O recorte de obras presente em Abismo contínuo dá a ver essa diversidade, com datas que vão desde os anos 1990 até os dias atuais.
Há anos vivendo e trabalhando no Jardim Canadá, nas redondezas de Belo Horizonte, o ateliê do artista é a marca da abundância de sua produção. Se do lado de fora o chão de terra vermelha guarda o clima árido de beira de estrada, dentro o jardim é úmido e há sempre uma dezena de obras em curso, materiais coletados para projetos vindouros, além de uma reserva técnica que acumula anos de trabalho. Desde sempre, Marco Paulo Rolla combina sua prática artística com o ensino e a pesquisa. Não é mero recurso metafórico dizer que o artista é uma escola, já que é responsável por formar diversas turmas de artistas, como professor da Escola Guignard e como fundador e coordenador do Centro de Experimentação e Informação de Arte (CEIA), que realiza desde 2000 importantes projetos como a Manifestação Internacional de Performance (MIP). A generosidade de ensinar (verdadeiramente) toca aqueles de sua convivência e, pelas constantes trocas, alarga as possibilidades do fazer artístico.
A exposição que ora se apresenta vem sendo preparada há vários meses. Como tantos eventos nesse contexto de pandemia, foi adiada um número de vezes por impedimentos sanitários, que são também políticos e culturais. A cada novo acontecimento, a cada nova data, mais pertinência iam ganhando seus trabalhos. No espaço entre a abstração e a figuração, entre o que precisa ser dito, o que cala e o que se imagina, entre resiliência, luto e transformação, a obra de Marco Paulo Rolla, em Abismo Contínuo, reafirma sua necessidade de vir a público, insistindo na arte e na vida.