“Fomos criados para olharmos uns pros outros, não fomos?” – Edgar Degas
No princípio era o olhar. O olhar fez-se corpo, e o corpo era o desenhar. Ato esse que nos fala, por meio de um retorno ao princípio, novamente do olhar. Nesse sentido, a epígrafe que abre este texto parece ser um bom lugar, tão apto quanto qualquer outro, de onde iniciarmos uma aproximação do trabalho de Paulo von Poser, pois ela nos acerca de um dos possíveis entendimentos de um artista cuja sensibilidade primeira parece ser o da complexa, porém fugidia, engrenagem do olhar, do ver, do observar e do fixar.
Há mais de quatro décadas, von Poser vem se engajando de forma constante com o desenho, cotidianamente registrando as infinitas possibilidades expressivas do marcar a traços uma dada superfície, à guisa de outra coisa qualquer. Na obsessão do fixar de suas observações visuais ele logrou construir um conjunto de trabalho que por sua coerência, constância, virtuosidade técnica e lirismo faz-se prova da curiosa permanência desse mais tradicional, ao mesmo tempo que subversivo dos fazeres. O desenhar do corpo humano, arauto maior dessa tradição, é, por sua vez, ambíguo ator dessa trajetória. Onipresente, porém inexplorado, simultaneamente organizador e desagregante, ele condiciona e comenta a inteireza de sua produção, a imagem de seus salsados corpos constituindo a chave de sua obra. Em seus desenhos o corpo representado fala tão alto quanto seu gesto marcador, desenhador e desenhado confluindo-se para dar origem a algo novo. Dissolvidos artista e modelo, tornam-se, ambos, desenho, sugestão tátil e imorredoura de um encontro vivido e passado. Como disse o artista: “Se o desenho pode ser considerado amoroso na sua relação com o olhar, essa condição diz respeito ao encontro do traço do carvão com o papel, do encontro do modelo com as outras imagens projetadas do seu corpo, do encontro do artista com seus desejos e medos.” Desses três encontros engendra-se o desenho de von Poser.
A presente mostra busca dar forma a essa contínua produção por meio de pouco mais de doze desenhos, os quais em sua totalidade focalizam o corpo masculino, e em sua quase inteireza o corpo masculino desvestido. Os dois únicos desenhos que não incorporam o nu masculino são Muso, de 1983, e Gustavo de 1985. Datados dos primeiros anos da carreira de von Poser, eles apresentam personagens, conhecidos do artista, dormindo, desprotegidos do olhar que perscruta seus corpos laxos em plena vulnerabilidade, distantes do desejo do artista ao mesmo tempo que preservados em seus segredos e intimidades. A virtuosidade desses desenhos, assim como de outro do início da sua carreira, O que é que tem na praia?, nos confronta com um artista em pleno domínio de seus poderes técnicos, seu saber colorístico e a precisão de suas linhas sendo belos exemplos dessa maestria, além de mestre também de suas possibilidades expressivas, nesse momento aspergidas de uma doce melancolia. A desproteção desses modelos, objetos e vítimas do olhar, nos ausenta deles numa pergunta torta, amalgamando o sonho escondido desses corpos ao desejo personificado do artista.
O conjunto apresentado, com seus ângulos cropados, seus corpos lassos de preguiça ou sono, confortáveis em sua inteireza e imperfeições, angústias e prazeres, é o testemunho de um artista de olhar caloroso, atento, aproximado e cuidadoso cujo alicerce sensível é o ato de olhar o mundo e retribui-lo a beleza com formas de arrebatada precisão. A sua curiosidade pelas coisas do mundo, seus fascínios e preferências, bem como sua libido, exemplificada no díptico Autorretrato com sobretudo, se mostram nessa seleção, assim como a coreografia do seu corpo no ato do fazer, linhas, traços e rabiscos, e as muitas posições necessárias para executá-las, sobrepondo-se uns aos outros para dar forma ao mapeamento de seu observar itinerante. Ao tocar com a ponta do olho e do lápis os contornos daquilo que vê, seu desenho pouco a pouco se estrutura, feito uma cartografia acumulativa e não linear do seu próprio corpo no ato de olhar.
Não pensemos, no entanto, que essa cartografia, das mais líricas por certo, carrega consigo tão somente a pureza apolínea das belas formas. Muito pelo contrário, nas garatujas e gatafunhas, nas quase incisões deferidas pelo artista sobre o papel, nos bruscos apagados e linhas riscadas de seus desenhos, somos colocados em contato com algo poucas vezes discutido na obra de von Poser: a inquietação e o desassossego do seu olhar. Em seus desenhos, essa inquietação angustiada faz-se constantemente presente graças às marcas irrequietas de sua mão. Externamente plácidos, são eles no interno inquietos e buliçosos, nervosos como formigas em expedição, daí serem ainda mais belos em suas confabulações. O irrequieto conjunto de 24 colagens Skanda é ótimo exemplo dessa característica. Seu título, que faz alusão ao Deus hindu símbolo do equilíbrio entre a força e a bondade, o poder e a beleza, e representação da capacidade de se perceber a diferença entre o verdadeiro e o ilusório, o real e o irreal, nos defronta com a qualidade essencial desse trabalho. Fragmentários em seus componentes e meândricos em suas composições, eles se estruturam a partir de opostos, de elementos contrastantes como a coincidência de imagens sagradas e profanas, sexuais e espirituais, bem como de técnicas opostas, molhadas e secas, teoricamente inimigas, mas aqui admiravelmente concordadas.
Outro ponto que deve ser aqui colocado é o da inocência e ingenuidade do olhar de von Poser. Não se submetendo à culpa do saber contemporâneo, ele enveredou ao longo de sua trajetória pelo caminho da candura e da singeleza, daquilo que por mais desconfortável que possa hoje nos soar no caleidoscópico universo estético em que vivemos deve ser chamado de beleza. Como consequência, seu trabalho carrega a honestidade de um olhar subjetivo, verdadeiro a ele mesmo, falho em sua pureza e colorido em suas preferências. Ele é um artista que nos se apresenta nu, descoberto e desprotegido, revelando-se por inteiro, sem filtros. A produção da harmonia de suas linhas sendo possível graças a essas qualidades. O grupo de colagens Body Pleasure evidencia essa característica. Nelas, imagens de corpos masculinos retiradas de revistas pornográficas e de fofocas ou livros de arte se apresentam como objetos do fascínio e desejo do artista, um deles tendo um pequeno coração gravado sobre seu peito. Nessas colagens de diminutas dimensões o artista não só representa o corpo nu, mas também se apresenta nu em suas ambições, desvestido de insinceridades ou dissimulações. A simplicidade do gesto, aliada a ausência de malícia em tal construção, quase adolescente em sua candura, nos confronta com uma busca helenística pelas formas ideias do corpo masculino, uma na qual o desejo faz-se constantemente presente.
Mas é no Autorretrato com lírio que a pureza de sua ingenuidade se revela de forma mais explícita. Sentado em posição de lótus, o artista se apresenta de pincel numa mão, ferramenta de seu ofício, e lírio na outra. Nu e com relógio no pulso esquerdo, ele nos enfrenta com seu olhar, desnudando aquele que o fita da mesma forma em que se apresenta desnudado. O lírio, símbolo de pureza e perfeição na tradição cristã, aponta para sua busca estética, ao mesmo tempo que revela seu intento inocente. Sua posição, de estabilidade e perfeição, indica seu íntimo contato com o próprio corpo no ato de retratar o mundo a sua volta. O relógio, por final, nos faz afrontar o tempo, sua inexorável passagem, sua voracidade em consumir a beleza dos corpos, bem como o fim de todas as coisas.
Nus em suas ambições, os desenhos ora apresentados sugerem a força existente na busca por uma certa beleza, não obstante os horrores da história, dos humanos e dos tempos. Dado que faz o presente autor lembrar de um poema de W.H. Auden sobre a chegada do homem à lua que em sua rabugenta sabedoria serve de apta defesa dessa mesma busca:
Our apparatniks will continue making
the usual squalid mess called History:
all we can pray for is that artists,
chefs and saints may still appear to blithe it.
Os nossos aparatniks irão continuar fazendo
a costumeira e sórdida mixórdia a que se chama História:
tudo quanto podemos rogar é que continuem
a aparecer artistas, cozinheiros, e santos para a alegrar.