Algumas questões foram compartilhadas comigo durante minha primeira visita ao ateliê/casa de Fefa Lins. Entre as discussões sobre autorretrato, figuração e pintura, também existia uma inquietação em relação ao seu próprio local de trabalho e à necessidade de mudar para outro lugar. A paisagem contínua de seu apartamento, antes composta apenas por paredes brancas, foi gradualmente marcada pelas tintas a óleo, resultado dos movimentos fugidios no gesto do artista. Seu corpo não se limita à tela, muito menos àquele construto arquitetônico.
O sonho, em sua forma imensurável, talvez seja o espaço mais apropriado, onde a paisagem se apresenta de forma desalinhada, emaranhada, dispensando a distância entre o corpo do sonhador, o que ele vê, sente e a própria atmosfera. Esse estado etéreo provoca transições contínuas, movendo-se de um ponto a outro sem se restringir às superfícies.
Lembro-me de uma passagem em um escrito de Leda Maria Martins, onde ela nos alerta para a má interpretação ocidental do termo graphen grego. Martins fala sobre a amplitude deste termo, que se refere ao ato de grafar, frequentemente mal compreendido como uma referência a uma escrita que exclui o corpo complexo, deixando apenas o sentido da visão como autoridade do conhecimento, a leitura através dos olhos operada como um saber supremo.
Essa noção ignora frequentemente as práticas dionisíacas em sua embriaguez, que sugerem a alteridade. Talvez na fuzaca, em festa, onde sátiros conviviam com ninfas – na mitologia grega, onde estavam atrelados ao deus Dionísio – não seria possível conceber uma história em que o corpo não estava escrito em si mesmo, sendo ele também o outro neste ambiente ébrio. Como regente de um coro, o sátiro conduz a dança e desconfia da afirmação que os humanos são apenas humanos. Sua morada, a floresta, dá o tom da infinitude.
A criança, por sua vez, ao tentar se deslocar, percebe junto às suas extremidades os limites diante de uma outra massa. Portanto, esbarra, cai, derruba, tropeça e cria marcas em seu corpo para compreender seu tamanho e suas possibilidades de amplitude. Brinca. Esse processo assemelha-se à inquietude de tatear imagens, um movimento em que o trânsito manifesta a transfiguração entre diferentes identidades fixas.
A presença dos sátiros e das crianças nos propõem uma desobediência, participação ativa no mundo, onde o perigo da vida é tão eminente quanto o da morte, o desconhecido não é o outro mundo, mas sim uma possibilidade de existir. Nos convidam corajosamente a enfraquecer a soberania.
João Nery nos conta que o outro é que nos diz tudo sobre nossa própria autoimagem, e se então criarmos uma vida sem este conto/ditador que é o outro? Seria então uma ofensa reduzir a elasticidade do corpo a uma vigilância que ignora o feitiço não visível.
Tomadas por evocações estas várias imagens parecem compor uma língua, um segredo também, onde ouvimos um eco entre cada imagem que ressoa na outra. Não importa se na repetição da figura a vemos uma, duas ou três vezes, mas a mudança é algo imprescindível a qualquer cena. Virar casaca poderia ser uma brincadeira apenas de times de futebol, poderia ser um gesto que burla códigos, poderia ser também o encontro entre águas doces e salgadas, onde juntas se fazem salobras.
As tintas reagem em várias camadas, e o artista sugere uma interação de tempos que se entrelaçam nessas texturas, que se contaminam a cada adição de substância. Os chassis sugerem aos tecidos suas fronteiras, ao mesmo tempo que almejam sua maior elasticidade. Os tecidos, por sua vez, pedem ao chassis seu arqueamento, da madeira se faz estrutura e desta estrutura é possível se pôr em pé no espaço.
Este rito, muitas vezes praticado pelo artista é a sua primeira profecia, seu primeiro gesto químico que mesmo sem alterar os elementos em sua composição, transforma na relação a agência de cada ponto. Professando transições, que muitas vezes não são visíveis a um primeiro olhar, mas que quebram condutas e estruturas gélidas.