Letícia Lopes

Letícia Lopes

n. Campo Bom, RS (1988)

Formada em Artes Visuais (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2016), participa de mostras coletivas no Brasil e no exterior desde 2013. Seu trabalho já foi apresentado em São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Rio Grande do Sul, Recife, França e República Tcheca. Seu trabalho consiste em investigar estratégias visuais capazes de propor ambiguidades de percepção, seja entre noções de realidade ou de possíveis ficções.

Através da pintura e do desenho, a artista busca possibilidades de concretização de regiões obscuras da decodificação e elaboração de linguagem simbólica, bem como a ampliação de sistemas moderados pela pré-linguagem – uma ativação sensível provocada pelo estranhamento com o confronto da imagem feita à mão. Em sua pesquisa, considera as teorias antropológicas que especulam sobre as origens da pintura e do desenho, e as proximidades entre pensamento simbólico e crenças místicas – e a construção de linguagem que adviu do entendimento do poder atribuído à imagem, quando em um possível “cenário ritual”. Valendo-se de uma extensa coleção de imagens provindas das mais variadas fontes, como enciclopédias, fotografias, gravuras, postais e imagens retiradas da internet, intenciona expandir significados e reelaborar imagens através da tradução pictórica desses “mistérios propostos”.

Seu trabalho integra o acervo permanente do Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul.

"De sombras e sonhos", por Agnaldo Farias, 2022

“Porque tudo canta e cantar é imenso” — Herberto Helder

A artista não se interessa pelas imagens nítidas e é de se supor que nas paisagens tomadas pelo sol, como a vista da praia ou do mar se perdendo na lonjura, como as ilhas, restingas, montanhas e até icebergs, prefira as miragens oscilantes produzidas pela separação entre as massas invisíveis de ar frio e quente, o assim chamado efeito Fata Morgana, que refrata a luz fazendo com que na distância o mundo flutue e dissolva-se. O interesse de Letícia Lopes, pende para as sombras e sonhos, para aquilo que não se sabe ao certo o que seja. E o que são as imagens sonhadas, qual sua substância? Provenientes do visto e vivido, a modalidade de imagens provenientes dos sonhos, mesmo quando cristalinas, são sempre anuviadas, organizam-se em encadeamentos truncados, aparentemente desconexos, arrastadas que são pelo “incompreensível vento do destino”, como sugere o narrador de Breve romance de sonho, obra prima de Arthur Schnitzler, o autor mais respeitado por Freud – não fora ele o responsável por A interpretação dos sonhos –, fonte de De olhos bem fechados, de Stanley Kubrick, todas as três certamente apreciadas pela nossa artista.

Possível prova disso é Fundo, tela grandiosa e soturna (180 x 130 cm), em cuja extremidade inferior, percebe-se uma pessoa deitada – uma mulher?, admitamos que seja uma mulher – ao lado de uma cama sobre a qual está uma máscara. Pesa sobre ambos, figura e máscara, sendo esta mais clara, mais identificável do que aquela, uma faixa escura como um mar convulso dentro da noite. Vagas de azul profundo espicham-se de lado a lado interrompidas por vestígios esmaecidos de brancos, amarelos e vermelhos arroxeados. Acima dessa faixa, a partir de uma linha de horizonte indecisa, ergue-se um céu azul claro, atravessado por um amarelo pálido, dentro do qual entrevê-se um disco solar. A dupla – mulher e máscara – submersa no plano mais fundo da tela, que também é o do sono, não recebe nada dessa elevação. E aí convém pensar no título. No dessa pintura e no das outras apresentadas – Procissão, Interior, etc – para se concluir que seu interesse por imagens cambiantes estende-se às palavras; examina as palavras, sopesa-as até o ponto em que elas rompem seu compromissos com significados unívocos, ganham autonomia e carne, e passam à esfera da sugestão. Não são mais janelas transparentes, no mínimo basculantes, acenam com profusões de significados.

Fundo? Afinal, a que a artista se refere? À tonalidade azul dominante da tela, cor sóbria e retraída? E ao seu protagonismo, ampliado por intermédio das pinceladas grossas, liberadas de um tratamento funcional? Ou ao plano inferior da tela, no qual jazem mulher e máscara? Ou seria ainda o que resta adormecido em cada um de nós, o canto mais recôndito, indeterminado, a salvo até mesmo da nossa vontade de compreensão? Resta ainda, e não menos importante, a sonoridade, a gravidade da letra u, que dá concavidade à palavra, levando-a, a quem a lê ou fala, a ressoar em extratos ainda mais subterrâneos. Essas possibilidades, esses caminhos em aberto, são recorrentes em seus trabalhos, recursos ciosamente cultivados pela artista.

Letícia pensa como poeta, como tal ocupa-se em arrancar palavras e imagens de servidões indevidas, visões simplificadoras de um mundo complexo e misterioso. Comecei o texto aludindo ao efeito Fata Morgana e aos sonhos, mas como se pode depreender a partir de um breve exame do título de uma das obras, a coisa vai além.

De onde vêm os animais protagonistas de Procissão? De imediato pensei em uma pequena alcateia de lobos-guarás, animal símbolo da fauna brasileira, com sua pelagem amarelo-avermelhada, suas patas longilíneas elegantemente revestidas de preto. Em seguida notei a possível presença de hienas, conferindo dubiedade à cena, jogando por terra uma hipótese ingenuamente realista. O que seria uma cena extraída de um desses deliciosos documentários da vida animal, converte-se repentinamente na soldadura de cenas distintas, retiradas de contextos distintos. Falando de contextos, de onde mesmo vem essa lâmina d’água onde o bando de bichos chapinha as patas? A imagem tem um quê de sonho: espreitamos um desfile – uma procissão – de bichos dentro da noite profunda; um pequeno milagre sob a forma de vidas construídas a base de pinceladas rápidas e cores contrastantes, acendendo a escuridão, iluminando o chão líquido; um véu movente e diáfano que de algum modo remonta a surpresa ancestral de apreender o dado selvagem circulando a nossa volta.

Letícia é uma colecionadora de imagens e objetos: “Eu caminho muito, por toda parte e sempre que posso. Entro em todo e qualquer lugar que venda livros ou objetos obsoletos (essa palavra eu tolero, mas não aplico), antiguidades, tralhas (essa palavra eu adoro), de outras pessoas, outros tempos.” Entende-se o porque dessa reação ao termo obsoleto: os objetos não cessam. O memorável Herberto Helder, poeta entre os preferidos da artista, alerta em seu poema Não toques nos objetos imediatos: “Uma jarra com um crisântemo transparente / tem um tremor oculto”. A artista toma imagens e objetos e os vai reunindo, arranjando-os com apuros cenográficos sobre tecidos estampados como um palco ou como um estudioso da escola de Warburg, menos interessado em organizações por família e similaridades, e mais no entrechoque formal e simbólico das tralhas coletadas.

Cada objeto e imagem, de uma colher a uma carta de tarô, carrega consigo uma miríade de significados, de tal modo que a sobreposição, justaposição e aproximação mútua abre perspectivas insuspeitadas, faz ressoar cantos imemoriais. Trata-se de um equívoco supor que objetos sejam triviais, até mesmo o mais corriqueiro coelho de porcelana, fabricado com o intuito simples de decorar uma mesa, nasceu do fascínio pela natureza, da percepção do nosso enredamento recíproco com ela. Daí a enigmática série de pequenas telas onde sempre uma figura humana com os braços abertos recebe sobre as costas a representação de um animal. Hoje em dia que a tatuagem virou um procedimento comum, valeria a pena discutir os fundamentos mítico-religiosos dessa prática, que em parte faz da própria pele a superfície em que se apresenta os valores que se pretende cultuar.

Num tempo como o que vivemos, em que a literalidade dos reality shows e das guerras viraram uma atração maior, Letícia Lopes evita os argumentos solares, defendendo o mistério e o enigma como princípios do que efetivamente importa.

Lista completa disponível no CV