Mauro Piva

Mauro Piva

n.Rio de Janeiro, BR (1977)

Bacharel em artes plásticas pela FAAP, Sp., Mauro Piva trabalha com desenhos, pinturas e esculturas.

Questões de identidade/não identidade, cotidiano, existencialismo, afeto e referências acompanham a trajetória de Piva desde o começo de sua produção.

Piva trabalhou com a representação da figura humana durante muitos anos, e aos poucos,  plantas e flores foram substituindo os corpos. Suas narrativas são “abertas”, instigando o expectador e completá-las a partir das experiências pessoais de cada um. Posteriormente , elementos do cotidiano de trabalho do Artista, também passaram a aparecer em sua produção, assim como a representação de fragmentos do seu dia a dia no ateliê.

As técnicas minuciosas empregadas em seus trabalhos, algumas vezes podem remeter a uma representação hiper-realista, porém Piva faz questão de deixar claro que seus trabalhos não são nem pretendem ser hiper-realismo. Sempre deixando pistas que são pinturas ou esculturas, Piva não busca uma representação fiel do real, preferindo trabalhar com estereótipos, brincando com conceitos de  representação e reconhecimento, pregando peças no olhar.

Desde 1999, expõe em individuas e coletivas e no Brasil e exterior. Tendo obras em importantes coleções como MAM SP (Brasil), MAC SP (Brasil),  MAM Rio de Janeiro (Brasil), MAM Bahia (Brasil), MAR Rio de Janeiro (Brasil),  IFF Ribeirão Preto (Brasil), Museu da Gravura de Curitiba (Brasil), Art ar Swiss Re (Suíça), Art C bater Hugo Voateng (Bélgica), Maxine and Stuart Frankel (EUA), JP Morgan (EUA) dentre outras. É representado pelas galerias Verve (SP), Enrique Guerrero (México) e Espacio Mínimo (Espanha).

Em 2015 foi lançada uma monografia pela editora Cobogó, com texto de Marcos Moraes.

"After", por Julia Lima

Há uma lenda contada pelos romanos sobre dois pintores virtuosos que iniciaram uma disputa para definir quem seria o mais habilidoso. Zeuxis revelou uma pintura tão realista que os pássaros se aproximaram tentando comer as uvas, e vangloriou-se de ter enganado os animais. Parrhasius, por sua vez, pediu ao rival que descerrasse a cortina que ocultava sua obra. Zeuxis, ao tentar afastar o tecido, percebeu que na verdade a cortina era pintada, tendo sido ele mesmo ludibriado.

Ao entrar no ateliê de Mauro Piva pela primeira vez, era possível deparar-se com uma série retalhos de papel fixados com fita crepe sobre grandes folhas em branco. Nos fragmentos rasgados, viam-se desordenadas manchas coloridas de variados tons e tamanhos – pequenos retângulos de matiz sólida, grandes borrões mais aguados, linhas de diferentes texturas e espessuras. Havia mais de trinta folhas pela parede. À primeira mirada, uma conclusão evidente: o artista havia guardado, e agora organizado, os testes de cor de distintas intensidades, proporções e densidades, apropriando-se do refugo de seu próprio trabalho – fixou os restos de papel com fita sobre fundos neutros como uma forma de exibi-los.

O olho, depois de se acostumar com os detalhes, no entanto, passava a enxergar pequenas distorções que incomodavam. Os diferentes materiais empregados nas supostas colagens pareciam se fundir e, em alguns momentos, surgia a dúvida sobre a presença da fita adesiva; em outros, sucedia a impressão de que não havia sobreposição de duas lâminas, e sim cortes e rasgos que levantavam camadas de uma só folha, às vezes deixando entrever a parede por detrás.

Esta nova série é, por um lado, um desdobramento de uma longa pesquisa do artista. Em 2013, por exemplo, desenvolveu trabalhos que simulavam a presença de muitas fitas adesivas coladas sobre a superfície do papel, mas usando na prática tinta e estilete para representar em um suporte único a sobreposição de dois materiais distintos. Neste mesmo conjunto, mandou fundir em alumínio pequenos objetos no formato dos rolos de fita para depois pintá-los, emulando a mercadoria real. Seus Post-itesquemas e Bilhetes seguiam a mesma lógica: a partir de uma folha única de papel robusto, dissimulava a fixação de um pedaço de folha de caderno ou post-it sobre uma base neutra, manejando estilete e criando ilusões com a tinta.

O processo de criação desses simulacros é árduo e demanda tempo, desde a delimitação da máscara que distingue objeto e fundo, até a habilidade de manejar o estilete para descamar a fibra do papel, passando pelo virtuosismo de reproduzir da forma mais perfeita possível à mão humana as pautas, as marcas e texturas dos materiais imitados. Nesta exposição, indo mais longe, Piva apropria-se não apenas de materiais industrializados ou de referências. É o que sobra de seu ofício de pintor que passa a ser elementar para este novo projeto. O tamanho dos cortes, a posição do desenho, o formato da pincelada – entre original e cópia, há pequenas diferenças que são aceitas apenas na medida em que o artista as considera parte do procedimento e se permite errar um pouco.

Por outro lado, as obras desta exposição também dão continuidade a outra investigação de Piva que passa pelas infinitas maneiras de se autorretratar. Vários duplos já haviam sido representados nos autorretratos como pincel, como lapiseira ou como lápis apontado, e mais recentemente, vinha experimentando modos de se retratar como tinta. Apesar de insatisfeito com o resultado, estes experimentos despertaram seu interesse de interpretar-se como cor. E foi ao visitar uma exposição de Matisse, na qual viu retalhos de papel pintado que sobravam das colagens do artista francês, que Piva entendeu a possibilidade real de uma outra espécie de autorretrato a partir dos resíduos de sua própria atividade.

Manteve os mesmos suportes que já faziam parte de seu vocabulário e passou a apropriar-se dos testes de cor que frequentemente realizava no processo de fatura das obras anteriores. Estes “ensaios”, parte intrínseca de seu ofício, vinham sendo acumulados no ateliê há algum tempo – são pedaços e restos de papel usados para testar nuances, a diluição da aquarela, a intensidade da pincelada, a grossura do traço e a textura da tinta sobre o papel. Curiosamente, ao tentar reproduzi-los, era preciso praticar novos testes, que por sua vez podiam servir de matriz para novos simulacros, e assim por diante, em um auto-encadeamento quase infinito.

O políptico com os variados testes deu origem a outros tipos de autorretrato, como a reprodução do papel higiênico usado para limpar os pinceis, e até mesmo dos godets usados para misturar as tintas (que também foram fundidos em alumínio sob encomenda, coloridos para tentar reproduzir fielmente os vestígios de tinta, como uma pintura tridimensional). Estas obras são as múltiplas versões que Mauro Piva (re)criou de si mesmo – assimilando as inevitáveis pequenas imprecisões inerentes ao procedimento manual. A dimensão mais forte e o aspecto mais relevante deste conjunto, contudo, não residem na técnica e maestria necessárias à execução dos simulacros, muito imediatas aos olhos, mas sim na potência de apropriar-se de si mesmo, dos próprios acidentes, de todos os traços fortuitos que foram feitos até aquele momento e de toda a esfera íntima que ali se materializa.

O encontro com Matisse também despertou a curiosidade sobre outros artistas que tivessem como prática em seu processo criativo a realização de testes e esboços de cor. Deparou-se com Ellsworth Kelly, William Turner, Caspar David Friedrich, Elizabeth Peyton, Joseph Albers e William Kentridge e decidiu, então, duplicar o material marginal que ia encontrando. Com extrema destreza, alcançou o mesmo efeito surpreendente de seus autorretratos.

Além do método laborioso, intrincado, Piva teria ainda que aprender a simular a mão de outra pessoa. Se já havia analisado ad nauseam a própria pincelada, foi preciso investigar e estudar à exaustão a pincelada dos outros pintores, íntima e descompromissada. Nesse sentido, encará-los não foi uma maneira de pintar seus retratos, mas de transfigurar-se para ser Albers enquanto reproduzia os testes de Albers, ou de incorporar Turner ao duplicar a pincelada de seus cadernos de desenho. Mauro Piva, assim, transforma testes de cor em autorretratos, seja de si mesmo ou de qualquer outro artista – não sem reconhecer que, para ele, entre os originais e suas reproduções há uma imensurável distância, como quando vemos o reflexo de uma figura sobre a água.

Lista completa disponível no CV