“Ainda não havia muita luz.
Era o instante em que a noite se separa do dia,
e o mundo de baixo se separa do mundo de cima.
O instante em que a luz e a escuridão ainda se tocam no mundo”
Sándor Márai (As Brasas)
Os primeiros raios de luz atravessam as janelas, iluminando móveis, objetos, plantas e também o próprio corpo daqueles que se encontram por ali. Sombras se formam e também se esvanecem pelas paredes da casa, que acorda e desabrocha a partir desse momento tão trivial, no entanto único, em que o dia surge e se desdobra perante nós. A partir daí, como bem definiram Goethe (1749-1832) e, anos mais tarde, Josef Albers (1888-1976) em suas reconhecidas teorias cromáticas, as relações traçadas entre cor e luz passam a acontecer tendo em vista a percepção e experiência daquele que as contempla. O prelúdio acima aponta a direção das pinturas e esculturas que o artista carioca radicado em São Paulo Mauro Piva apresenta em sua primeira individual na Galeria Verve, em São Paulo.
Assim como seu conterrâneo Alberto da Veiga Guignard que dizia “pintar o que via”, Piva também nos mostra um ângulo fundamental da realidade que nos cerca. Mas se o primeiro costumava filtrar suas cenas com imaginação e lirismo, o segundo coloca em seu realismo camadas de afeto, elencando as imagens registradas com seu pincel a partir da relação intrínseca que estabelece com elas. Na obra de ambos, a figuração pictórica é um suporte para a emoção estética. O pintar é o espaço em que se realizam como sujeitos e também onde congregam faculdades nos campos analíticos e da percepção. Para Piva, tal emoção começou pelos corpos humanos que protagonizaram sua produção por anos. A partir de 2009, no entanto, as formas reveladas em suas pinturas passaram a materializar-se em plantas, flores e frutos e tornaram-se também mais verossímeis, levando seu espectador muitas vezes a questionar a realidade. Como defendia Michel Foucault (1926-1984), “não busquem no alto um cachimbo verdadeiro; é o sonho do cachimbo; mas o desenho que está lá sobre ele, bem firme e rigorosamente traçado, é este desenho que deve ser tomado por uma verdade manifesta”.
A veracidade da flora domesticada que reconhecemos nas pinturas do artista nesta exposição, realizadas de aquarela à tinta acrílica, passando por guache, grafite e impressão digital, nos conecta também ao estilo de vida urbano em que vivem muitos de nós e onde a própria galeria se encontra. A expografia proposta por Piva tira proveito dessa interessante localização, utilizando-se também da luminosidade que penetra pelas janelas da sala expositiva, no centro de São Paulo. As sombras criadas pelo artista em suas obras, que reforçam sua destreza no estudo da cor e da luz, trazem dimensão às cenas e realismo aos objetos animados e inanimados presentes em cada pintura, já que mimetizam a sensação solar que receberiam se estivessem ali presentes de forma tridimensional. Tal sensação, por sua vez, tem origem na própria iluminação da casa do artista, espaço onde viveu por nove anos, desde que se tornou pai de seus dois filhos, e de onde agora se despede. Por meio dos títulos de cada obra, é possível localizar o ambiente onde a cena acontecia a cada manhã aos olhos de Piva, por quartos, salas, lavabo e janelas.
Entre as memórias afetivas que o artista transporta à galeria está a Tumbergia, trepadeira de origem asiática que floresce seus reconhecíveis botões azuis praticamente durante todo o ano. Se na antiga morada ela acabou por tomar quase por completo seu principal muro, no espaço expositivo suas flores ocupam lugar de destaque em um site specific. Recriadas em porcelana fria e recobertas uma a uma pelas cores e sombreados de Piva, elas brotam da parede central, agrupando-se de forma orgânica e convidando o espectador a movimentar-se em seu entorno em uma espécie de coreografia. As pinturas-objetos são um dos traços marcantes de sua produção artística, que despertam ora desgarradas como esculturas, ora de dentro de uma de suas pinturas, fazendo-nos presenciar o deslocamento da matéria e o surgimento de um novo suporte.
É também por meio da projeção desses elementos que percebemos sua contínua pesquisa em torno do tempo. Tempo escolhido para capturar com seu pincel os diferentes momentos do ciclo vital da natureza, como o amadurecer dos frutos, o murchar das flores e o cair das pétalas. Tempo que fica explícito pelo caminhar da tinta ao encontro da luz, convidando-nos a refletir sobre recomeços e futuros possíveis em cada período de nossas próprias vidas.