Um corpo não é feito só de carne e osso. Nem mesmo só de matéria. Misto de máquina e instrumento, prótese e laboratório de experimentação, ele é sobretudo um conjunto de códigos, signos, imagens, tecnologias, protocolos e propriedades. Uma festa e um campo de batalha. Como nos ensina Paul Preciado, nosso corpo é um texto socialmente construído, e é através desse elemento sempre em disputa que o poder político se impõe.
É nessa direção que a obra de Tales Frey se trama. Estamos diante de uma pesquisa interessada em desafiar as convenções do corpo biomorfológico hetero-patriarcal, na busca de um organismo mais híbrido, de matéria elástica e formas múltiplas e transitórias. Não é raro identificarmos em seus trabalhos alguns procedimentos que profanam o corpo através de espelhamentos, duplicações e multiplicações, transformando-o temporariamente num dispositivo estranho e menos reconhecível, menos pautado por estigmas, padrões sociais e expectativas pré-estabelecidas. Tales joga ainda confundindo as marcas do feminino e do masculino, suspendendo a suposta naturalidade do contrato sexo/gênero, ao propor experimentações que chacoalham os signos convencionais como o vestido de noiva, o salto alto, o tule e outras vestimentas consideradas “coisas de mulher”, ou o terno e o sapato social, considerados “coisas de homem”. Suas ações questionam o binarismo como chave de leitura para o corpo social.
A radicalização desse gesto nos leva às obras mais interativas, que convidam o público a experimentar diferentes situações que exigem uma negociação de diferenças, situando o trabalho como um terreno democrático por excelência. O artista tem explorado o conceito de indumento, ao configurar dispositivos que funcionam como uma pele que conecta um corpo ao outro. São peças como luvas de boxe, roupas, tecidos elásticos e pares de sapatos que demandam que os participantes estabeleçam acordos diversos entre desejo e movimento, o que nos faz lembrar de certa tradição relacional da arte brasileira, interessada no binômio arte/vida. Interessa-me chamar essas obras de esculturas sociais, já que tensionam o individual e o coletivo; o pessoal e o político. Nessas operações, a relação eu-outro não é estável, mas intercambiável. Se não há consenso que reste, o trabalho pode ser o lugar de coexistência dos dissensos. Aliás, no Brasil de 2021, talvez seja esse o desafio mais latente para todos nós.
Mas resta algo mais. Ao olhar para essas obras, também constatamos que toda identidade é construída em contraste com uma alteridade, um outro de quem nos diferenciamos. Só somos algo em relação a um referente, o que significa que somos muitos, na medida em que mudam os nossos contextos. A estrutura de um corpo é a composição da sua relação; e a possibilidade de reconhecer a identidade como uma dança das cadeiras nos habilita a perseguir uma subjetividade menos subordinada às coerções sociais. Creio que reside aí a potência do trabalho de Tales Frey: reivindicar o sujeito como construção ficcional para compreendê-lo também (e necessariamente) como objeto. É nessa dupla condição que poderemos exercitar a nós mesmos como plataformas singulares, migrantes e transitórias — formas abertas, como a própria matéria da vida.