Partilha de Ilusões; Texto Crítico de Leandro Muniz
18.06-18.07.2022

Partilha de Ilusões; Texto Crítico de Leandro Muniz

Tales Frey 18.06-18.07.2022
"Carta a Tales Frey (ou sob o signo de gêmeos)", por Leandro Muniz

Querido Tales,

Foi em uma segunda de manhã que você me enviou uma DM me convidando para escrever este texto. Não nos conhecíamos, então eu só sabia do seu trabalho por exposições ou por algoritmos que acertavam ao me mostrar roupas — que você chama de “indumentos” — construídas para conectar dois corpos pelas pernas, como na performance-foto-vídeo Tapete Vermelho (2019) ou pelo tronco, como no Fio Condutor (2020).

Desde que vi sua produção, lembrei de como nosso querido Félix González-Torres (Cuba, 1957 – Estados Unidos, 1996) introduziu um elemento homoerótico [1] na alucinação de neutralidade da “estética minimalista” — que, no fundo, tem pressupostos altamente masculinos, brancos, e estadunidenses, ou seja, algo bastante localizado. Ele tensionava abstração e autobiografia, enquanto você, em seus duplos e múltiplos, usa objetos e signos que me levam a pensar em um universo relacionado às classes médias urbanas, com as implicações sociais e raciais desse contexto. Neons luminosos ou letreiros de acrílico, roupas de veludo, moletons e camisetas cinzas, backlights, sapatos de salto alto, tutus. Elementos com marcadores de gênero muito codificados que você recombina, demonstrando os limites do pensamento binário e outras possibilidades de articulação.

Em alguma conversa, você mencionou que, quando você era pequeno, sua mãe tinha uma academia feminina de ginástica. Muito além de uma anedota pessoal, esse dado me levou a elaborar algumas questões. Primeiro, como esse imaginário de neons, vestidos vermelhos e ícones publicitários parece dizer respeito de uma época. Talvez sua adolescência e início de vida adulta entre os anos 1990 e 2000, enquanto você ainda estudava e trabalhava com teatro. Essa é uma informação importante, pois você começou nas chamadas artes plásticas lidando com performance. Inclusive, você edita uma revista [2] sobre o assunto e, mesmo na produção de objetos, há algo de performático e cênico na sua prática.

Mas a pergunta mais complexa que me surgiu foi: Qual é o estatuto do corpo em seu trabalho? Algo já convertido em código. Talvez por isso os elementos que você mobiliza possam ser permutados em múltiplas combinações internas, mas também em diferentes suportes ou, melhor, “corpos”. O Finitas Contagens para infinitas variações (2017) surgiu como uma performance em que você reproduz as poses que o Bruce McLean (1944), artista escocês, desenvolveu em Pose work for plynth (1971) e que é a base para sua releitura. Assim como ele apresenta as fotos da ação em que emula uma escultura [3], você também apresenta as imagens daquilo que poderia ser efêmero.

As pernas são outro signo com o qual você lida bastante. A escultura Pé 45 Sem Par (2021) é desdobrada em vídeos que registram suas manipulações. Há outra escultura cinética de parede em acrílico em que oito desenhos desse membro formam um círculo. Thighlighting (2020), com esse título em inglês e o aspecto icônico e chamativo de gadget publicitário, guarda o mesmo aspecto gráfico de outros trabalhos, como os backlights da série Dupla Penetração (2021) que mostram formas fálicas que criando uma espécie de alfabeto, apresentado ora só como contornos, ora só como sombra, ou como uma mistura dos dois.

O que esse corpo reduzido a um código diz do nosso momento histórico? Da vida mediada há tanto tempo por telas? De relações sociais instrumentais? Não se trata do corpo como interioridade, ou experiência fenomenológica e de indeterminação. Talvez porque gênero e raça são experiências que, no fundo, são códigos usados para o controle do poder…

Você é um artista que escreve, edita, faz performances, objetos, vídeos, fotos, dá aulas e faz curadorias. Os mesmos problemas são abordados e rearticulados tanto em variações internas em cada uma das obras, quanto no conjunto de suas atividades. Erotismo e permutação. Um polimorfismo que me faz pensar em como o capitalismo se camufla e se infiltra na veia dos dias para nos condicionar. Seria o seu trabalho uma emulação desse problema? Uma crítica? Um sintoma dessa experiência.

A exposição Partilha de ilusões abre em junho, mês do orgulho LGBTQIA+ e do seu aniversário. Sob o signo de gêmeos, você compartilha conosco seus duplos, corpos rearticulados e projetos realizados com outros artistas, amigos, família e amores. Gêmexs Trapezistas (2022), inclusive, é a instalação-instrução que convida o público a esse equilíbrio frágil experimentado por dois. São trabalhos inéditos em São Paulo e que, além de serem produzidos em diferentes momentos, já foram apresentados em outras situações — o que me faz voltar, quase obsessivamente, incorporando seu modo de operar, às possibilidades de rearranjo no interior de cada trabalho, entre eles e na sua prática como um todo.

Em preto, branco e vermelho, a paleta escolhida para a mostra também parece lidar com a cor como código, em especial de gênero. O vermelho e o caimento do veludo de Sissyparity (2020) evocam vestidos de festa e, de dentro de monte de tecido, você veste cada um dos seus membros com um elemento, o que gera a ilusão de uma profusão de diferentes corpos e é reiterado pela forma espelhada como você apresenta os duplos de fotografias ou vídeos. Mas há algo importante a ser comentado desse trabalho: o trocadilho entre a palavra “sissy”, gíria pejorativa para bicha em inglês — e que, assim como “bicha”, nossa comunidade incorpora positivamente — e a palavra cissiparidade. Esse fenômeno é “um tipo de reprodução assexuada […] observada em bactérias, podendo também ocorrer em alguns protozoários e leveduras” [4]. Um corpo que se divide potencialmente ao infinito, portanto. Poderíamos fazer muitas leituras dessa associação, mas vou me deter naquela que mais me toca: o problema do duplo e seus múltiplos derivados como uma posição existencial, digamos, que implica acolher a diversidade na unidade e vice-versa.
O problema da cisão (ou da partilha?) me fez pensar na personagem do romance Avalovara [5] cujo nome é um símbolo. Imagino que não tenha tido tempo de ler esse livro desde que começamos a conversar e você veio de Portugal para o Brasil a trabalho. Mas prevejo sua identificação com essa figura que tem dois corpos, duas idades, dois nascimentos, “asteroide cindida e unificada”, que vê o mundo “sob dúplice ótica” e fala “com boca dupla”. Duplicidade sem antagonismo. Multiplicidade na unidade. Talvez habitarmos dois pensamentos e dois corpos permita uma abertura e uma fratura necessárias para qualquer germinação. Fissura e liberdade. Amor e revolução.

Espero que você esteja feliz — exatamente isso — com a exposição e com o ano que se abre pela frente.

Um abraço
Leandro Muniz
Junho de 2022

 

Notas

[1] Ver AULT, Julie (org.). Félix Gonzalez-Torres. Göttingen: Steidl, 2006.
[2] A revista digital Performatus, fundada em 2012, cujas edições são anuais, é editada por Frey e pela artista e pesquisadora Hilda de Paulo, que também é sua companheira.
[3] In https://www.tate.org.uk/art/artworks/mclean-pose-work-for-plinths-3-t03274
[4] In https://brasilescola.uol.com.br/o-que-e/biologia/o-que-e-cissiparidade.htm
[5] LINS, Osman. Avalovara. São Paulo: Editora Melhoramentos, 1973.

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