Na rádio, anunciam-se desastres ambientais, população em estado de alerta, desmatamento. Esses ruídos são indícios da fase antropogênica em que nos encontramos. Embora isso não seja novidade, diante do ápice ainda incerto da crise global, nos vêm à mente as consequências das disputas territoriais e seus impactos nos ecossistemas, especialmente no que se refere às transformações e ao esgotamento das terras brasileiras.
Independemente de nosso futuro, nos lembraremos dos montes cariocas nas melodias de Villa-Lobos, das estalagmites ecoando nas composições de Hermeto Pascoal, dos caminhos rurais interioranos de Agostinho Batista de Freitas e da urbanização vista pelas janelas de Djanira da Motta e Silva. Por meio dessas representações, vivenciadas por seus interlocutores, talvez as entenderemos como artifícios para evitar o esquecimento coletivo dessas territorialidades. Mas como recuperar as sensações que paisagens extintas já trouxeram?
Durante a pandemia, Lucas Rubly (São Paulo, 1991) inicia séries de pinturas nas quais castelos de areia, bosques, lagos, flores e formas abstratas emergem como refúgios, lugares amenos e acolhedores. A trama das temáticas segue os vestígios da sua memória: os castelos de areia lembram a precariedade da casa em que cresceu, no bairro Vila Ivone, na Zona Leste de São Paulo, construída pelo bisavô e agora prestes a ruir. As casas sem portas nem janelas, sempre distantes, guardam as paisagens das viagens a Monte Verde na infância, quando um ideal de família ainda parecia possível; as flores em vasos remetem à contenção do selvagem, sintoma de uma lógica de violências sobre o natural. Mais recentemente, a abstração o descarregou da figuração anterior — um alívio que veio após um período intenso de confinamento e produção.
Para conceber ambientes externos ao doméstico, Rubly mesclou fotografias antigas às pinturas de outros artistas. Adequou-se, então, aos recursos tecnológicos contemporâneos, apropriando-se da inteligência artificial como ferramenta criativa, incluindo na sua prática a criação de um banco de imagens para serem processadas, filtradas em até três imagens, editadas no Photoshop e finalmente pintadas. Mesmo após o isolamento imposto, o artista manteve esse processo de pesquisa na sua produção: de representações inexistentes construídas pelo excesso de imagens para resultar na recriação de paisagens próprias.
“A tentativa de relembrar não é uma tentativa de reviver. A memória é sempre uma construção imperfeita, e essa imperfeição está também nos suportes, no preparo da tela, no desenho, na forma de mostrar” diz Rubly. Por isso, suas pinturas — por vezes realizadas em telas de algodão, em outras pintadas diretamente na madeira — têm escala pequena e intimista, confortável para os olhos acostumados à leitura das telas de tablets e celulares. O formato quadrado, pouco comum na pintura tradicional, pode vir a ser reflexo do repertório visual das redes sociais. Ao dispor as séries na parede, costuma embaralhá-las como um jogo de memória, com fragmentos de temáticas que, quando relacionados, formam narrativas cruzadas — elemento característico do mass media. O arranjo, somado às composições desalinhadas, dão ritmo à leitura das obras, como uma partitura musical a acolher o visitante dos ruídos externos.
As pinturas, em trânsitos temporais e espaciais, permitem revisitar paisagens moldadas pela memória e pela tecnologia, ao mesmo tempo em que as despersonaliza. Morandi, Volpi, Lorenzato, Vila Ivone, Monte Verde, álbuns e cenas familiares são misturadas às imagens dos algoritmos para se tornarem referências particulares, quando listadas. Quem sabe um anúncio de vasos ou até uma obra de Aurelino; cada olhar reconhece algo familiar, absorvido no fluxo do dia a dia.
Parecido com a composição do haicai — poema conciso sobre temas simples, que atravessa tempos, lugares e movimentos artísticos sem perder o vínculo com a natureza e o ritmo cotidiano —, o trabalho de Lucas Rubly revela as camadas dessas apropriações e reformulações, deslocando-as de seus contextos originais.
“no que eu sinta
sim um pouco de papel
muito de fita
e um tanto de tinta
pego esse mundo
bato na cabeça
quem sabe eu esqueça
quem sabe ele enfim
haikai do mundo
haikai de mim
(…)
no espelho
de relance
a cor do sonho
de ontem.
(…)”
Paulo Leminski, Ideolágrimas (1983),
poema do livro Caprichos e relaxos.
Assim como o eu lírico se enxerga no poema e captura o “mundo” com poucas palavras, Lucas Rubly constrói metonímias de sua solidão. Não por acaso, o haicai de Leminski intitula sua primeira exposição individual em 2024, na Galeria Verve, para unir o passado ao presente e ressaltar a relação entre o processo subjetivo de criação e os fragmentos de uma consciência coletiva.