Natureza de Reposição; Texto Crítico de Gabriela Motta
30.03-18.05.2024

Natureza de Reposição; Texto Crítico de Gabriela Motta

Daniel Acosta 30.03-18.05.2024
Gabriela Motta

Daniel Acosta; Natureza de Reposição

Gabriela Kremer Motta
Pesquisadora, crítica e curadora em artes visuais
Professora adjunta UFRGS-DAV

Doce devaneio

Tudo reluz, no agora. Uma floresta quase abstrata repousa suspensa na parede. Ao centro do espaço, encontra-se um lago aparentemente caricato, sinuoso e brilhoso (capaz de incorporar ao léxico em curso a coluna estrutural do ambiente, a qual tangencia). Ao lado, um sólido e estático cervo, adornado por perfeitas esferas. A atmosfera construída nesta situação atravessa o tempo e o espaço. Condensa em formas incognitamente conhecidas cores, desenhos e materiais de um futuro sonhado pela utopia da convergência entre arte, indústria e progresso.
Doce devaneio redivivo no presente.

É com esta cena que Daniel Acosta nos recebe em Natureza de Reposição, exposição individual do artista na galeria Verve. Na mostra, Acosta apresenta três trabalhos que, além de estabelecerem um diálogo absolutamente entrosado entre si e a arquitetura da galeria, sublinham a relação entre a poética do artista e as formas de representação da natureza, questão que perpassa, em grande medida, toda sua trajetória.

Em boa parte da fortuna crítica produzida sobre o trabalho de Daniel, um traço reiteradamente destacado é o intrincado nexo entre escultura, arquitetura e design. Tal qualidade é percebida tanto em suas estruturas diretamente voltadas para a ocupação humana, projetos de mobiliários esculturais, ou em suas obras em franco diálogo com o repertório de formas da arquitetura, ou ainda quando desenvolve peças que se relacionam com imagens de natureza. O repertório de materiais empregados pelo artista reforça esse aspecto, evidenciando seu referencial aos postulados da arquitetura e do design modernista.

No entanto, por mais que esta ligação ainda orbite o conjunto ora apresentado, o que parece destacar-se nesta exposição é a direta conversa entre essas obras com as imagens de natureza produzidas pela cultura de massa. Há tempo Acosta olha para o mundo reconhecendo nele detalhes que comentam nossa complexa relação com o resultado desse encontro. É da cacofonia visual que marca o caos urbano que Daniel pinça a matéria-prima para seus projetos. Transfigurados em formas esculturais, tais particularidades, frequentemente consideradas de gosto duvidoso, tornam-se objetos autônomos, cujo referencial deixa de ser evidente. Assim, estampas têxteis com motivos vegetais, animais selvagens em miniaturas de plástico, lagos artificiais dos centros comerciais; entre tantas outras formas que emulam uma ideia de mundo natural, são invocadas na obra do artista enquanto vestígio extirpado de seu contexto de origem.

Construções comuns em ambientes de grande circulação, estas formas-imagem de natureza normalmente surgem, nesses espaços, esvaziadas da dimensão de descontrole e mistério próprias aos seus referenciais, cujo traço primordial é a permanente transformação. Nos parques temáticos os lagos são sempre azuis, as plantas são sempre verdes, as folhas não caem e não há formigas para morder nossos pés. Ao retornarem ao mundo em um outro regime de visualidade – o campo da arte contemporânea –, provocam um atravessamento de sentidos tomado de ambiguidade. Habitam um hiato entre o kitsch, o glamour e a operação estética, fazendo com que o espectador fique se perguntando o que fazer com todas as informações que percebe.

A cena

Em Natureza de Reposição, as três peças apresentadas por Acosta articulam uma situação instalativa. O lago, o cervo e a floresta, conformam uma cena e convocam o próprio corpo para sua percepção. O tempo das esculturas parece suspenso enquanto o tempo do espectador a transitar entre as peças, passa em alta velocidade. As obras se tornam testemunhas da nossa existência provisória. Como num filme de David Lynch ou de Jia Zhangke, tempo e espaço se atravessam, diferentes concepções de mundo coabitam. Em uma única mirada, sobrepõem-se à cena descrita: o icônico prédio que abriga a galeria, o universo da arte contemporânea, a plasticidade industrial, a temperatura cromática da gravura japonesa do século XIX, a infância animada por réplicas de animais selvagens. Choque de sensações em ebulição.

Os elementos

Tendo como referência, de um lado, o padrão de um tecido encontrado em Recife e, de outro, a paleta de cores de uma gravura de Hiroshige, a floresta-escultura suspensa ao fundo da galeria brilha como um espelho d’água, instigando nossos olhos a submergir em seu interior. Construído a partir de recortes a laser de cada fragmento de cor, o trabalho é também um minucioso quebra-cabeças, um delicado trabalho de marchetaria, exigindo uma concentração meditativa na sua construção – e também no seu decifrar. A sensação espelho d’água e a dimensão minuciosa de sua feitura, contrastam com a imagem de paisagem absolutamente plana do objeto tridimensional. Palavras-conceitos como escultura, relevo, pintura, mobiliário, mostram-se insuficientes, instigando-nos a mergulhar na experiência complexa e inexata da vida, sem nome preciso, aquela mesma apontada como ausente das formas-imagem de natureza presentes no caos urbano.

Já a compleição do cervo advém de pequenos animais de brinquedo. Ao perceber neles uma complexidade escultórica, ainda que nesse contexto de moldes plásticos, o artista desenvolveu, incialmente, a série Animais Lentos. Esculpidos em madeira maciça, no caso do cervo, madeira de uma viga estrutural de uma casa do século XIX, revelam seus encaixes nas diferentes tonalidades da matéria. De estatura mediana, o cervo estático agora possui esferas ao redor de seu corpo, também de madeira maciça. Protuberâncias, nós, que poderiam ter brotado da própria matéria, ou aderido ao animal por alguma atração misteriosa, pesam sobre o bicho mantendo-o em estado de sugestão. Qual Pigmaleão – que deu vida a uma estátua – Daniel metamorfoseia aquilo que virou de “reposição”, múltiplo ao infinito, em obras singulares e que nos deslocam, tanto por suas harmonias, ritmo e cores, quanto por nos situar em uma narrativa em abismo: o animal de brinquedo, que volta a ser mágico e, ainda, matéria-vestígio de toda existência contida em uma casa.

A terceira obra, o lago, irá emanar a energia que conecta todos os elementos em uma mesma situação: incorpora não só o cervo e a floresta, mas também a coluna estrutural a qual tangencia. Como se tudo isso estivesse absolutamente imóvel enquanto o mundo todo gira ao seu redor – o ponto calmo do centro do furacão. Síntese de milhares de lagos artificiais, desenhado em perfeitas curvas, ocupando o chão da galeria, seu volume é a materialização de uma imagem arquetípica. Mas como tropeçar num arquétipo, ocupar simultaneamente o mundo das ideias e o mundo concreto?

Daniel Acosta parece nos dizer que as brechas estão em todo lugar. E que outra utopia, o encontro harmônico entre criação humana e natureza, pode acontecer a partir do improvável e se materializar – aqui – diante de nossos olhos.

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