“Quanto mais os telescópios forem aperfeiçoados, mais estrelas surgirão” — Gustave Flaubert
O questionar do campo tridimensional da arte brasileira tornou-se nos últimos anos o território privilegiado para o surgimento de novos e bons artistas. E não apenas dentro do eixo São Paulo – Rio-Belo Horizonte, mas também em vários outros centros esses artistas espalhados pelo Brasil vêm redimensionando as noções canônicas da escultura, objeto, instalação, ampliando os limites entre essas modalidades e as fronteiras entre elas e a pintura, o design, a gravura e o desenho.
Dentro dessa situação ampliada da arte brasileira atual surge a produção de Daniel Albernaz Acosta. Qualquer reflexão sobre essa nova situação da arte brasileira que opera dentro – e no limite – do tridimensional, passa por sua trajetória e se amplia com ela.
Pensar Acosta em relação a produção de outros artistas espalhados pelo território brasileiro, é refletir sobre as circunstâncias naturais e culturais que seus ambientes de origem exercem em suas produções. Embora totalmente conectados com o debate artístico contemporâneo, esses artistas não extirparam de seus trabalhos soluções formais provenientes dos lugares onde suas peças de originaram.
Pelo contrário: em muitos casos, a base de seus trabalhos é justamente a tentativa de depuração de estímulos visuais originários de uma ambiência nativa, através de procedimentos e/ou aderências captadas no âmbito da arte contemporânea… Os trabalhos da primeira fase de Daniel Acosta sem dúvida seriam outros, se ele não estivesse impregnados pela situação arquitetônica/urbanística de Pelotas, interior do Rio Grande do Sul.
Nascido em Rio Grande (RS), Acosta emergiu em 1989, a partir justamente de Pelotas, cidade onde iniciou sua atuação profissional como artista e professor universitário. Num estado sem um patrimônio escultórico digno de seu interesse, sua produção teve como ambiência primeira o entorno pelotense, repleto de referências arquitetônicas construídos entre o final do século passado e o início deste. O que o cativou não foram propriamente os edifícios ecléticos e/ou art-déco que tentam resistir ao desmantelamento criminoso da especulação imobiliária, mas os elementos ornamentais que adornam aquelas construções, e os tapumes que protegem da vista dos passantes, a destruição daqueles ícones de uma riqueza passada.
Os trabalhos de Acosta até 1992, 1993 – realizados preferencialmente em lâmina compensada púrpura -, eram a intersecção poética entre o tapume e o ornamento arquitetônico, entre o visível e o oculto. Preenchiam a dor do vazio de uma destruição em contínuo devir.
Entranhadas em seu ambiente de origem, encarnadas na realidade de Pelotas, que as abrigava, aquelas peças como que disciplinavam os excessos ornamentais dos edifícios pelotenses, ao mesmo tempo que transformavam em elementos preciosos a matéria e a cor dos tapumes que os encobriam.
Porém, a significação dessas peças nunca se restringiu ao fato de terem nascido como recriações dos elementos arquitetônico/urbanístico pelotenses. Não. O que é interessante é como Acosta a partir dessa base, digamos, afetiva, conseguiu ampliar a própria definição de escultura, ligando seu trabalho a uma das várias correntes da arte brasileira atual, exatamente aquela que se formula nos limites entre a pintura, o relevo, a escultura e o design.
A produção desse período trafega ao lado – sem nunca se confundir, porém -, e na mesma trilha por onde caminham as obras de artistas há muito tempo presentes no circuito brasileiro. Como a produção de Amílcar de Castro e de Carmela Gross, aquelas peças tangenciavam os limites entre a pintura e a escultura, projetavam-se para o tridimensional, preservando o plano da parede, literal ou metaforicamente.
Em São Paulo a partir de 1994, o trabalho de Acosta passa por uma transformação substancial. O impacto da caótica metrópole dentro da poética do artista ajudou a aprofundá-la, tornando-a ainda mais madura.
Dentre as diversas transformações, em primeiro lugar chama a atenção a mudança dos materiais: se antes Acosta trabalhava preferencialmente com a madeira laminada compensada púrpura, nos novos trabalhos prevalecem o gesso e a fórmica. Do caráter quente da madeira púrpura, o artista se defronta então com a impessoalidade da fórmica (metáfora de seus sentimentos em relação ao novo espaço urbano que tentamos abarcar?).
Outra transformação visível: se antes o universo do design já se manifestava na produção do artista, com sua vinda para São Paulo esta característica se amplia. Os trabalhos atuais não inspiram mais tênues associações a objetos industrializados dos anos 30 e 40. Hoje são referências explícitas a tablados de segurança para pedestres, pisos, banheiros, mictórios … “ objetos indiferentes” de uso público e /ou privado, reestruturados pela sensibilidade de alguém que estranha o novo ambiente, porque sem dúvida Narciso acha feio o que não é espelho.
Numa cidade que substitui a cada dia os índices de sua identificação, cuja melhor síntese é uma avenida -, aqui nada nos reflete, a não ser os vidros dos edifícios, dos carros, e os equipamentos eletrônicos de segurança.
Como nada nos representa, e tudo tende a se apresentar como simulacro, o corpo humano – antes território mor da representação escultórica-, o corpo aparece nos trabalhos de Acosta como ausência (no “mictório”, na “banheira”, nos “ladrilhos”). Ou enquanto imanência pura, na tela da televisão. Se em Rodin o corpo é matéria, textura, volume e massa, em Acosta o corpo é sua falta ou pura superfície sem espessura (a televisão, a pele que é fórmica).
Acoplado a este estranhamento total, a vontade de construção de um realismo pânico frente à não realidade de São Paulo, Daniel Acosta resgata para sua produção, antes totalmente antenada com o vernáculo, referências eruditas inegáveis: “Marat” remete a David; “Observatório” a Duchamp; “Escultura Básica” a Carl Andre…
E como se, frente à realidade rarefeita de São Paulo – onde tudo é fachada ou via de acesso -, o artista tivesse tido a necessidade de ancorar sua sensibilidade em algum porto, identificável. No caso, a história da arte modernocontemporânea, único lugar onde hoje Acosta e outros artistas parecem se reconhecer.
Caracterizadas as mudanças, resta chamar a atenção para o que se manteve constante no trabalho do artista.
Suas peças atuais, como as anteriores, continuam a trafegar entre as definições convencionais da pintura e da escultura, tendo no relevo seu ponto de intersecção. Acosta, apesar do caráter gélido do gesso e da total impessoalidade da fórmica, continua a discutir simultaneamente questões ligadas às tradições da pintura e também da escultura, mantendo a sua produção no fértil não-lugar do relevo – espaço rico da arte brasileira nos últimos trinta anos.
A mudança para São Paulo, o contato com a metrópole cuja identidade não são os velhos prédios, nem a natureza, nem a cor local mas, justamente, a negação de qualquer possibilidade de identidade, não fez com que os trabalhos de Acosta mudassem nessa sua característica básica: eles continuam dependentes do plano, discutindo problemas da pintura e da escultura. Ao mesmo tempo, numa continuidade que só o enriquece.
Pensar a produção de um artista levando em conta suas relações com o meio onde ele atua, só parece possível neste final de século, após a derrocada dos valores das vanguardas européias e norte-americanas, tornados internacionais. No caso específico da arte brasileira atual, mais e mais artistas ainda jovens, deixam de lado os excessivos rigores do formalismo vários daquelas tendências, direcionando seus interesses artísticos e estéticos na busca de uma síntese profunda entre a arte e a vida, em seu sentido mais amplo.
O caso de Daniel Acosta parece exemplar. Os trabalhos recentes que ora apresenta em São Paulo dão conta de provar o quanto pode ser profícuo o exercício do artista deixar-se penetrar pelo estímulos do ambiente onde vive, por mais hostil que ele seja. Suas obras, transpiram o ambiente onde foram concebidas e executadas. Se hoje o realismo pânico de seus trabalhos extravasam uma freqüência semelhante as obras de Ana Maria Tavares e Iran do Espírito Santo (os mais instigantes tradutores de São Paulo, atualmente), é porque, sem dúvida são a síntese de uma sensibilidade construída em outro lugar, que não se deixa intimidar pelo constante massacre do eu numa cidade como esta megalópole… e reage.