Reflexo:
Na cosmovisão greco-romana, o jovem caçador Narciso encara sua imagem em repetição contínua, a ponto de perder sua vida por uma espécie de amor-próprio. O mito é comumente associado ao padrão de poder colonial, no qual nada além de si é visto nem amado e a partir do qual se anula o dessemelhante. Diferentemente das divindades afro-brasileiras Iyabás mães-d’água, Iemanjá e Oxum, entidades da cosmogonia iorubá, carregam consigo abebés¹, instrumentos bélicos reflexivos a expressar a verdade e o autoconhecimento. Nas imagens refletidas, além de potencializá-las no espectro individual e coletivo, os espelhos mostram aquilo que está às costas daquele que se olha. Como uma extensão simultânea à visão que mantém à frente, esse duplo reflexo permite a observação de ambas as direções, tal qual dos seus tempos – passado, presente e futuro. A água, elemento a conduzir a narrativa de Narciso tanto quanto de Oxum e Iemanjá, transborda o mero reflexo individual, ao representar também cosmopercepções nas quais se moldam identidades coletivas.
Captura:
Se, do ponto de vista geopolítico, a água é movimento – a impulsionar migrações, delimitar ecossistemas e travar disputas territoriais –, biologicamente é substância crucial à existência humana, animal e vegetal. Na dimensão simbólica, ela reflete uma autognosia: aquilo que atravessa, constitui e contamina o próprio ser. Tal qual a água, a linguagem fotográfica compartilha o efeito social e político como registro cultural a refletir as discussões correntes.
Bobina:
Rebobina-se, desde 1888, ao slogan da Kodak: “Você aperta o botão, nós faremos o resto”². Desde o automatismo do maquinário até a criação da câmera digital, o consumo excessivo pelas redes sociais e as críticas decorrentes, a fotografia se desestabiliza e ressurge sob novas formas, recontextualizando-se como um campo que é pós-fotográfico. Ao ultrapassar o domínio da técnica, expande-se a apreensão do tempo, do rito e do fato. Reserva-se, porém, ao humano o gesto, a intenção, o sentido e a memória.
Arquivo:
“Era uma vez muitas vezes (…). Era uma vez outra história, depois outra e depois outra. Todas um pouco diferentes. Todas mais ou menos iguais.”³ Assim escreve a autora paulista Amanda Julieta ao multiplicar as vivências contidas nas três gerações de sua família, todas mulheres negras brasileiras: entre silêncios, lacunas e narrativas fragmentadas, inscreve-se uma história curva. Aline Motta, artista niteroiense, em A Água É uma Máquina do Tempo4, torna denúncia a linhagem, a linguagem e os vestígios documentais. Todas produzem contra-arquivos: estratégias de retomada. Todas se fazem ancestrais das suas mães, ao escolher reencenar a existência delas mutuamente a sua existência como filhas, tal qual o tempo espiralar conceitualizado por Leda Maria Martins5.
“Se a primeira revolução digital levou ao descrédito de um determinado regime de verdade, com a segunda é a vez da memória.”6 A partir da dissolução e recomposição com fabulações críticas, essas artistas fazem uso do regime escópico para cumprir princípios tradicionais da fotografia: salvaguardar a identidade e a memória. A negociação com o tempo, no entanto, recodifica as violências sistêmicas: os mecanismos que historicamente reforçam discriminações servem também como artifícios para sua restituição.
Intenção:
Mayara Ferrão mergulha nas falhas da representação. Diante das ameaças em relação ao imaginário e à autoria – conceitos considerados obsoletos para a pós-fotografia –, ela usa a inteligência artificial como um abebé, ferramenta bélica a unir o futuro ao passado supostamente inacessível. Como um jogo estratégico de cooperação, entre a pesquisa de documentos coloniais e pós-coloniais de domínio público, somado a estudos de técnica em acervos institucionais e influências do que recorda ter visto em antiquários, faz uso da escrita poética para dar-lhe comandos (prompts) que, em seguida, passam por tratamentos diversos com colagens, sobreposições, aplicações de cor e texturas.
Ferrão adequa o residual ao sintético, gera visualidades ausentes em acervos: mulheres negras plenas de si, de seus afetos, de seus sagrados. Das fotografias imaginadas, mas não captadas no século 19, Mayara Ferrão se torna testemunha. Impossibilitada de retornar a essas experiências, produz negativos simulados, falsos na forma, verdadeiros na intenção, que contra-ataca o apagamento com a fabulação do arquivo, ao performar historiografias como amparo social.
Comando:
Câmera DSLR EOS Rebel T7i, lente angular 28º, fotografia de arquitetura, enquadramento aberto. Ponto de vista no eixo 1,50, olhar humano. Imagem hiper-realista da Galeria Verve. Fachada de vidro leste, sobreloja 06, Edifício Louvre, São Paulo, projeto Artacho Jurado. Interior minimalista, coluna quase central levemente à esquerda. Três paredes: duas retas, uma curvada. O piso de cimento queimado polido reflete luz suave. Teto branco. Iluminação mista: natural matinal, tubular branca difusa, spots quentes direcionados. Pé-direito alto, sensação de amplitude. Seis fotografias P&B, amplas margens de paspatur, molduras cor de alumínio. Dispostas com espaçamento preciso, criam atmosfera contemplativa.
Tratamento:
Na exposição O Primeiro Rastro Foi Água, Mayara Ferrão ativa visualidades que dialogam com os mistérios da cosmogonia iorubá, construindo uma ponte entre terra e Orum por meio da imagem. Suas obras preservam uma relação íntima com o espiritual sem reduzi-lo à explicação ou ao espetáculo. As aparições – animais, elementares, entidades e figuras mitológicas – desafiam o escopo da inteligência artificial, ancorada em paradigmas coloniais e algoritmos normativos. Em vez de reproduzir o olhar estereotipado, Mayara tensiona seus códigos: insere corpos negros, femininos, lésbicos, envoltos em axé. Suas imagens se tornam menos sobre representação e mais sobre disputa – entre captura e devolução. Pode-se assim dizer que, se a máquina gere imagens, somos nós quem as geramos; se a máquina apaga imagens, somos nós quem as lembramos.
O uso do formato carte de visite, reminiscente do século 19, reforça a estratégia de retomada: não exportar alteridades ao olhar externo e sim devolvê-las ao Brasil enquanto legitimação da presença afrodiaspórica, representada sem a distorção imposta pelo espelho eurocêntrico. Ao manipular a IA, fabulação crítica e técnicas de aprendizado de máquina [machine learning], Ferrão devolve a dissidência à máquina, elaborando uma contrapedagogia imagética diante do epistemicídio colonial.
Camadas:
Talvez o que nos permita associar a água a essas camadas de retorno e sobreposição – como um reflexo espiralar – seja seu ciclo de movimento contínuo entre a atmosfera, os oceanos e os continentes. A lógica do deslocamento e da reaparição: um fragmento deixado hoje será inevitavelmente conduzido pelos fluxos – evaporação, correnteza, infiltração – e reencontrado, transformado, em outro tempo e lugar. É essa mesma lógica que segue a pesquisa de Mayara Ferrão, assim como a de Amanda e Aline: partir da escrita para atravessar a imagem, que, mais do que dispositivos de captura, se torna superfície de retorno e profunda negociação.