Posesión; Texto crítico de Ayrson Heráclito
24.08-05.10.2024

Posesión; Texto crítico de Ayrson Heráclito

Carlos Martiel 24.08-05.10.2024

NOTAS SOBRE UMA POÉTICA DA VIOLÊNCIA SEM REFÚGIO

Ayrson Heráclito (curador e artista)
Beto Heráclito (escritor)

O itinerário artístico de Carlos Martiel pode ser compreendido enquanto experiência de autoteoria errática nos quadros da sociedade ocidental. Nessa perspectiva de abordagem, o artista transforma sua existência em uma experiência radical de arte.
Martiel é cubano (1989) com ascendência Haitiana e Jamaicana e, fez da condição apátrida o território da sua poética.

Podemos pensar o seu discurso artístico enquanto a voz dissonante de um sujeito negro, queer, desterrado e imigrante em constante embate com as politicas de assujeitamento do seu tempo. Apresentando um arquivo de situações, onde racismo, sexismo, colonialismo e utopismos se entrecruzam nas mais torpes e sádicas violências, o artista produz um manifesto antirracista e libertário. A poética da sua obra desencadeia na audiência um desconfortável susto ético e político.

É do lugar do sujeito, atravessado por muitas instâncias de dominação, que só tem de si o próprio corpo, que Martiel espetaculariza, performa, figura e esculpe a dor e a desumanidade que sofrem os subjugados. Seu corpo em estado de performance apresenta de forma nua e crua a violência do colonialismo escravista patriarcal. Ao mesmo tempo, esse mesmo corpo é um brado insubmisso, que transforma as suas ações em trincheiras de luta contra todas as formas de opressão, tirania e desigualdade.

O campo conceitual das obras de Carlos Martiel, nos faz pensar nas matrizes fundantes do pensamento crítico da colonialidade, oriundos da mesma diáspora africana no Caribe, como Franz Fanon e Aimé Césaire. A radicalidade da sua obra também pode ser associada ao pensamento afropessimista do norte americano Frank B. Wilderson III.

As ações de Carlos parecem parafrasear Fanon: a violência sem refúgio é a condição sine qua non da negritude nos quadros da sociedade colonial. Em grande parte das suas performances o corpo negro é frequentemente exibido sendo violentado pelos processos de aniquilação do racismo. Seu trabalho nos mostra que o negro é necessário nos quadros da sociedade ocidental para demarcar as fronteiras da “subjetividade humana”. As suas performances, nesse contexto, constituem uma rasura crítica e contundente contra a supremacia branca. O artista desnaturaliza o principio racista que afirma que só existe o “homem ocidental” porque existe o seu contrario, o negro. O negro é a encarnação de toda a antítese do humano nessa sociedade. Ele não existe enquanto humanidade. Ele só existe enquanto materialidade, enquanto coisa.
A obra de Carlos Martiel vem afirmar que vidas negras importam.

São muitas as desigualdades, para além do racismo, que articulam o mundo colonial, e Martiel também resolve abrir/expor essas feridas; esculpindo suas dores e traumas em sua própria carne. Não é à toa que a performance é a expressão legítima da sua arte pois realiza a sua condição política fundamental, qual seja, a relação indissociável entre arte e vida. Seu corpo negro performa, expandindo e reivindicando todas as humanidades confiscadas.

Na sua primeira exposição individual no Brasil, intitulada Posesión na galeria Verve, o artista expõe a forma como vem pensando questões relativas as desigualdades que atingem os negros e os povos originários no nosso pais.

No caso do negro, Martiel faz opção por salientar um fato singular, qual seja, as populações africanas brutalizadas pela diáspora da escravidão serão as mesmas que irão legar as tecnologias de cuidado e de cura, fundamentais para os processos de superação e reconstrução da sua identidade metamorfoseada na condição negra. Tal elaboração fica clara na obra “Gran poder”(2023) ,onde duas sacerdotisas do candomblé são responsáveis por manter vivo o corpo acorrentado do artista que está submerso em uma rio de águas profundas e caudalosas. Nessa ação o artista confia a sua vida nas mãos de duas Yalorixás, que evitam o seu afogamento. Na obra, o artista reconhece o grande poder de cura, sobrevivência e insurgência de espaço do povo negro como os candomblés e quilombos.

Já em Posesión (2024) o artista transforma uma mesa de refeição, além do seu uso habitual, em um instrumento de suplício escravista. Sobre a mesa serve-se um excepcional banquete da culinária afro-baiana. Contudo o artista aprisiona a sua cabeça e as mão ao objeto, demonstrado que é o seu corpo que sustenta a estrutura. O negro aqui é aquele que serve, aquele que sustenta. A obra é uma explícita alusão às “exclusões e reduções” do racismo brasileiro. O artista parece perguntar: como é que em um país onde a população negra prepara e serve um opulento banquete afro-brasileiro, ainda está excluída de partilhá-lo?

O título que nomeia essa exposição guarda uma ambiguidade perversa presente na racialização brasileira. Se por um lado ela remete ao estado de transcendência e de evasão mítica – que são estados de liberdade e conexão ancestral – por outro lado, ele diz respeito ao corpo negro dominado e submetido. Assim compreendemos que o artista trabalha com as grandes chaves do racismo brasileiro que inclui/exclui, aproxima/distancia, joga/dissimula.

Nas obras sobre as questões dos povos originários,Martiel parece querer nacionalizar o genocídio americano. Pintando com sangue emblemas, corpos e bandeiras ele busca localizar a geopolítica da violência promovida pela estrutura de dominação que agem sobre corpos indígenas massacrados.

A construção da imagem na obra de Carlos Martiel é precisa e essencial. O artista demonstra um entendimento sensível dos elementos que compõem a cena – tanto na live performance como nos seus registros fotográficos- revelando um profundo domínio da colocação de seu corpo em ação no espaço compositivo.

O artista empreende uma arqueologia da violência colonial em seus aspectos mais necessários e brutais. Com uma assombrosa e explícita honestidade corpórea, ele expõe as feridas profundas que habitam o corpo e a própria alma dos submetidos ao racismo, ao patriarcado, à colonialidade e ao sexismo.

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