Na presente exposição, dividida em dois núcleos, PV Dias revisita o século 19 para reconfigurar as relações de poder automatizadas no Brasil. A partir de arquivos de sua cidade natal, Belém, e de sua vivência no Rio de Janeiro, o artista fricciona e intervém o sistema cárcere-cêntrico, desafiando sua aparente imutabilidade. Com uma estética vibrante, gráfica e múltipla, “Que Tenhas o Corpo” e “Noite de Pau e Corda” tensionam os distanciamentos gritantes e subcomunicados entre Norte e Sudeste, assim como as violências coloniais enraizadas nessas dinâmicas.
Em “Que Tenhas o Corpo”, o artista apresenta o Livro de Registros Contendo Histórico de Condenados e Suas Penas, da Biblioteca Nacional, no qual carimba as imagens com a frase “Eu te absolvo”. O carimbo, usado como contraproposta à humilhação física e moral sofrida, gestualiza uma restituição de dignidade simbólica aos primeiros corpos negros fotografados e nomeados nos registros oitocentistas. Assíncrono ao imaginário visual contemporâneo sobre o sistema penitenciário – composto de 69,1%* de pessoas negras em 2023 –, o ato propõe uma reparação simbólica à construção dessa imagem, convidando o público a acrescentar, em um livro em branco, os nomes de suas redes afetivas pessoais, como uma sequência de redenção. Esse exercício expande o debate sobre o abolicionismo penal e, de certa forma, mostra quantas das pessoas impactadas por esse sistema estão inseridas no campo das artes, estabelecendo outro cruzamento de dados.
Já em “Noite de Pau e Corda”, o artista nos transporta para um episódio de prisão em flagrante ocorrido em 1900, durante uma noite na casa de Antônio Moraes, tocador de carimbó – ritmo e dança de origem afro-indígena, celebrado no atual Pará. Proibido em determinado momento pelo Estado sob o pretexto de “promover desordem pública”, o caso – noticiado com perspectivas opostas – remete a outras manifestações artísticas e religiosas, passadas e presentes, alvo de controle e repressão, marcadas pela intolerância das classes dominantes que, historicamente, implementaram políticas de afastamento e marginalização das expressões culturais dissidentes.
PV Dias não só recorre à linguagem local e popular para subverter as tradições do meio artístico hegemônico como também se coloca como parte desse corpo social impactado e cerceado pelo mecanismo imposto. Assim, ao abordar um sistema falho e contraditório, conduzido pelo racismo estrutural, o artista se apropria da lógica da correção para revisar essas operações. Ao fissurar e rasurar a narrativa oficial, reinterpreta essas memórias, transformando o apagamento em um processo de restituição.
* Estatística de 2023 retirada da página 360 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024.