As obras de arte não podem conhecer guetos, ou confinamentos de qualquer espécie. Um de seus motores mais importantes sempre foi a força erótica. Essa força se confundiu com as formas mais altas da beleza. Admira-se um corpo nu porque ele é belo, mas esse belo é o esplendor erótico feito arte. O velho tema de separar beleza e erotismo, como fez Sir Kenneth Clark em seu estudo sobre o nu, não passa de pudica ingenuidade.
Maçãs, pêssegos, morangos pintados numa natureza-morta não provocam as mesmas sensações que os verdadeiros frutos. Basta pegar e comer o morango que nos atrai, se ele é real, para satisfazer o desejo. Na pintura, esse desejo nunca é satisfeito fisicamente, mas somos recompensados pelo mistério, pela poesia ou pela beleza que o artista pôde obter. São satisfações que nunca terminam. Estão sempre ali para nos servir.
Está claro, o artista não precisa ter fome, nem mesmo gostar de morangos, para pintá-los. Não precisa acreditar em Deus ou em santos para fazer quadros religiosos. Também não precisa ser homossexual para fazer quadros homoeróticos, nem hétero para representar nus femininos. A sexualidade do artista pode inspirá-lo, mas não necessariamente. Isso é verdadeiro também para o espectador. Seria absurdo supormos que todos os florentinos fossem homossexuais quando viram pela primeira vez o Davi de Michelangelo e o admiraram. Nem todos os florentinos de ontem e de hoje, assim como todos turistas que vão a Florença, o sejam.
O gueto e o confinamento fizeram com que, hoje, o Davi seja reivindicado pela cultura gay. Não sei se seria comum encontrar uma de suas reproduções ornando a mesa de um hétero. Esta é, por infelicidade, uma limitação sem sentido. O prazer oferecido por uma obra de arte, com seu componente erótico, vai muito além das sexualidades. Sexo e erotismo se juntam, mas nem sempre e nem de modo necessário. A arte é feita de seduções inaccessíveis.
Artistas héteros podem criar arte queer, assim como um público hétero pode admirá-las. Estamos num mundo em que as definições classificatórias imperam. Hétero não pode ser gay, e vice-versa. A grandeza dos transgêneros está no fato de que eles não são mais nem homens, nem mulheres. De que romperam as fronteiras. Essas mesmas fronteiras eróticas que traçamos hoje, bem cercadas, como se os desejos não pudessem fluir. Sobretudo no campo artístico, que é virtual.
A origem do mundo, de Courbet, foi uma encomenda destinada a homens héteros. Mas ela não se oferece só para eles. As obras de Francisco Hurtz nasceram de suas inquietações internas, nas quais sua sexualidade decerto tem parte essencial. Depuraram-se com a força de emblemas: tanto é que, pelo mundo afora, gays marcaram seu próprio corpo com tatuagens nelas inspiradas. No meu mundo ideal, porém, héteros também as tomariam como modelo de tatuagem, assim como gays desenhariam sobre a pele imagens de belas mulheres nuas. Sei que é pedir muito. Mas uma hipótese assim indicaria o caminho.
Em todo caso, creio que não se destrói guetos criando outros. A arte queer deve integrar galerias ou museus, não porque é queer, mas porque é arte. Uma exposição queer não pode ser restrita apenas a artistas, ou espectadores, queer. Isso seria criar o mais nocivo dos curtos-circuitos, aquele que expulsa e odeia o outro.
Ao centrar-se sobre o corpo masculino e sobre o fetichismo homoerótico, Francisco Hurtz celebra menos uma sexualidade exuberante do que o rigor próprio a uma síntese concentrada. Opera uma desumanização, seja ela sentimental, seja ela de estímulos eróticos. Instaura mais a contemplação do que o apelo do desejo. Mesmo suas épuras de jovens, delicadas, sugerem um esvaziamento: nem rosto, nem alma. Os personagens sado masoquistas expulsam o erotismo pela objetivação de uma imagem que possui algo de demonstrativo.
Francisco Hurtz toma, nas pulsões homoeróticas que despontam nas obras, a exposição que as anula. Constrói sua arte por meio de uma objetivação que universaliza. Não é um artista queer para queers. É um artista, e basta.