Paris, 1889. A torre Eiffel havia sido há pouco inaugurada. A construção dividia opiniões: alguns a admiravam como símbolo de progresso francês, enquanto outros relutavam com a gigantesca torre erigida em um rompante na paisagem da cidade. O poeta francês Guy de Maupassant era um dos opositores ao projeto: entretanto, durante longo período, almoçava todos os dias em um dos restaurantes do primeiro piso da torre de ferro. Quando indagado sobre essa aparente contradição, respondia que aquele era o único lugar de Paris em que podia estar e não ver a torre.
A recente produção do artista Gustavo Rezende parece aproximar-se, em muitos pontos, a essa estória. A repetida produção de esculturas que retratam Maxwell, personagem que se apresenta como espécie de alter ego do artista, não recai em um ato ensimesmado ou numa repetição narcísica. Constitui, porém, um sólido corpo de trabalho que objetiva atacar questões próprias ao campo da história e da teoria da arte contemporânea, sem negligenciar os contributos da modernidade para o âmbito da escultura. Dessa forma, dentro de si mesmo é o único lugar de onde não se vê: adotando sua fisionomia individual como principal ferramenta ilustrativa da narrativa, o artista pode, enfim, abandonar esse tema e deter-se a questões essencialmente intelectuais, artísticas e escultóricas.
As indagações de Rezende sobre o posicionamento do artista na contemporaneidade versam – entre muitos outros assuntos – sobre a dualidade do interno e do externo, indivíduo e do coletivo, da visão de si mesmo e dos outros. Apenas pela visão no ângulo em que são exibidas, não se distingue se as esculturas do artista são ocas ou maciças, mais valendo o que o espectador acredita que elas sejam. Num ar próximo ao ceticismo filosófico, incisivamente discutido em seus trabalhos, especialmente no final da década de 1990, o artista levanta questionamentos contundentes sobre a aparência e a essência – ou a casca e o miolo –, princípios caros à técnica da escultura, sobretudo acerca de si mesmo. Esses pontos cruciais são direcionados por Rezende a uma discussão meta-artística, que concerne muito mais a questões teóricas sobre a arte do que questões existenciais individuais.
As investigações de Rezende proporcionaram-no um alargamento quanto ao repertório imagético e um aprofundamento quanto ao arcabouço teórico, causando um confrontamento do artista com respostas já aparentemente bem solucionadas para questões centrais da prática escultórica. Os diálogos que o artista traça com princípios modernos – como a cor sólida, a reprodutibilidade e o monólito como proposta de algo puro – e contemporâneos – como possibilidades geográficas da escultura, a impressão de movimento e as possíveis relações da escultura com uma base – aparentam uma inquietude questionadora em um panorama em que muito já foi dito, mas não o suficiente. A inesgotabilidade do assunto, ao mesmo tempo que o conforta, o assola; mas, no final das contas, a insatisfação o basta.
No recorte de trabalhos expostos nessa ocasião, há uma dicotômica latência que Rezende explora há décadas. Primeiramente, uma potencialidade poética – fabulada tradicionalmente pelo artista ao definir seus títulos enigmáticos, principalmente em seus trabalhos mais antigos –, acentuada por uma narrativa fictícia atrelada à figuração, provocando no espectador a necessidade da elaboração de um raconto que não é oficializado pelo artista – às vezes, inclusive, por não existir. Em um segundo momento, há uma contingência de movimento característica em suas esculturas, em uma oscilação entre o bidimensional – especialmente nos relevos – e o tridimensional – nas obras de maior profundidade. O desenvolvimento poético e plástico de Rezende se configura robusto ao mesmo passo que se faz paradoxal, com assertivos enigmas: uma suposta “facilidade de compreensão” da sua obra pela conexão familiar que se tem com o aspecto figurativo humano se esvai no segundo em que embrenha, mesmo que superficialmente, no universo intelectual do artista.
A fisionomia das esculturas tomou a sua própria por coincidência do destino. A torre Eiffel também não tinha intencionalmente esse nome: roubou o nome do seu criador, Gustave Eiffel, por conveniência. Frankenstein também não é o nome da criatura, como nos é automático, mas do doutor que o criou. Esse fenômeno geralmente acontece quando a obra se torna maior que seu criador, extrapolando os limites individuais e analisando os contributos ideológicos para um contexto mais expandido. Essa é uma das maneiras pelas quais podemos ler a espelhada obra de Gustavo Rezende.