SP-Arte 2022
06.04-10.04.2022

SP-Arte 2022

Daniel Acosta 06.04-10.04.2022
"Anti-wide: lembrar a paisagem, esquecer o horizonte", por Mateus Nunes

As tradições visuais ocidentais de enquadramento e recorte de imagens têm sido alteradas na era digital: andamos à mão com smartphones de telas verticais, que têm nos condicionado não só a visualizar imagens nesse formato, mas também a produzi-las e a entendê-las na verticalidade. Consumimos conteúdos e publicidades realizadas especialmente para esse novo formato portátil; fazemos fotos e vídeos considerando essa verticalidade. Mídias no formato horizontal são consumidas no repouso, em TVs, projetores, monitores de computador ou até mesmo celulares em “posição de descanso”, estabelecendo uma hierarquia de que o que é vertical é transitório e temporário, e o que é horizontal é longevo e mais importante, digno de permacência. Os termos “paisagem” e “retrato” são usualmente utilizados como sinônimos de “horizontal” e “vertical”, respectivamente, reportando a uma generalização desses tipos de pintura de cavalete desde o século XIV, onde a maioria das obras que reproduziam paisagens estabelecia-se na horizontal, e as que representavam retratos, na vertical. É como se a verticalidade, o retrato e o ser humano ocupassem lugares de atividade, enquanto a horizontalidade, a paisagem e a natureza pertencessem ao repouso.

Daniel Acosta (1965 – Rio Grande, RS), assente no princípio da ambiguidade, decide por exibir uma série de objetos escultóricos que apresentam paisagens verticais, investigando possibilidades de trabalhar o tema da paisagem na contemporaneidade sem um magnetismo automático para o formato horizontal. Há, já nessa frase, uma constelação conflituosa de imagens, conceitos e ideias que se chocam e se complementam à primeira vista. Essas obras não atendem totalmente às especificações do que tradicionalmente se espera ao se remeter a um objeto ou a uma escultura, habitando nesse “entre-plataformas” e sendo chamadas de “objetos escultóricos”. Provocativamente, são planos expostos e afixados na parede, próximos à exibição convencional de pinturas – aqui, o acabamento amadeirado no entorno das obras não remete diretamente à tradição da moldura, embora com ela guarde alguma semelhança; mas objetiva conferir uma profundidade mais acentuada a esses planos em que as paisagens portáteis de Acosta residem, ironicamente contornadas por um material artificial que simula madeira. A ironia segue ao objetivar representar paisagens naturais e selvagens em técnicas e materiais altamente tecnológicos e sintéticos, como a fórmica, o MDF e corte a laser, questionando os campos limítrofes entre as noções de natureza e artificialidade.

Há décadas, Acosta propõe esses recortes naturais que podem ser transportados, assim como nas tradições islâmicas, onde os tapetes funcionavam como jardins portáteis que poderiam ser levados a qualquer lugar, afim de que se mantivesse uma relação de veneração ao cuidado da natureza através da jardinagem. O artista então revisita, na História da arte, a temática da representação de paisagens na pintura, na gravura e na fotografia, usualmente melancólicas e impregnadas de certo bucolismo. Ao olharmos essas paisagens portáteis, ao invés de escaparmos do mundo urbano – no sentido latino de ‘fugere urbem’ –, somos reinseridos na artificialidade impressa pelo ser humano na paisagem.

Ao pensar o espaço e retratar suas florestas e paisagens naturais em materiais sintéticos, Acosta incentiva o questionamento das interferências humanas no ambiente natural, reiterando que a própria noção de naturalidade é artificial. Afinal, as intervenções humanas no ambiente deveriam ser consideradas naturais, na medida em que o ser humano – sendo membro de um ecossistema – molda o espaço às suas necessidades, como propôs Paulo Mendes da Rocha (1928-2021)? A artificialidade seria inerente à produção humana e à sua visão de natureza? Levantando questionamentos e provocando pulverizadas respostas, Acosta nos sugere que a hostilidade não se encontra na selvageria das florestas, mas no pensamento agressivo da sociedade contemporânea e nas suas dinâmicas predatórias de produção e de ocupação do espaço. Nas obras “Paisagem de evasão (verde claro)” (2021) e “Freestandupforest” (2010), massas verdes de folhas que coroam copas de árvores se tornam planos vetoriais coloridos, convertidos a uma linguagem tecnológica para que máquinas – porventura – pudessem replicá-los irrestrita e insustentavelmente.

Na série “Paisagem Combinatória Vertical”, o artista apresenta diversas combinações cromáticas a partir do mesmo desenho – formas compostas por linhas retas e semicírculos, que podem ser lidos como nuvens, fluxos de água ou lava, trechos de solo, campos gramados etc. Elas partem de uma consistente pesquisa que Acosta desenvolve sobre as representações de paisagens nas artes orientais, principalmente pinturas japonesas sobre tecido e papel no período Edo – vale aqui destacar os trabalhos de Itō Jakuchū (1716-1800), Katsushika Hokusai (1760-1849) e Utagawa Hiroshige (1797-1858).

Acerca do tema, Acosta ressalta duas importantes características dessas pinturas japonesas incorporadas à sua série: a perspectiva e verticalidade dos planos. A primeira versa sobre a representação oriental do espaço da paisagem, feita a partir de uma verticalidade que prolonga o plano do solo e que não obedece aos mesmos princípios da perspectiva cônica – técnica florentina desenvolvida no século XV e perpetuada aos dias atuais na arte ocidental –, acentuada por Acosta ao fazer as paisagens nesses planos escultóricos milimetricamente chapados. A segunda dá ênfase à preferência por planos verticais ao representar essas paisagens, que, quando necessitavam de maior horizontalidade, eram compostas por vários planos verticais alinhados, como nos biombos dobráveis (byōbu), nas portas de papel translúcido (shoji) e na lógica de aplicação de papeis de parede – elementos verticais que, quando justapostos, resultam em uma composição horizontal.

No panorama da arte brasileira, as obras se conectam com os trabalhos de fórmica de Carlos Fajardo (n. 1941), especialmente com as obras “Hora tonal” e “Hora da chuva”, ambas de 1971, em que o artista elabora duas paisagens – horizontais – com a mesma composição de formas, mas com diferenças na escolha das cores das peças marchetadas manualmente.

Uma noção de portabilidade da paisagem na arte contemporânea brasileira análoga à de Acosta pode ser exemplificada através da série de pinturas com tinta acrílica sobre tela chamada “Montanhas do Rio”, da artista carioca Wanda Pimentel (1943-2019), produzidas na década de 1980. Pimentel representa, a partir de linhas e planos em cores chapadas, em perspectivas com ponto de fuga único, paisagens do Rio de Janeiro enquadradas por caixilhos de janelas, às vezes abertas, às vezes fechadas. São, em seu cerne, paisagens portáteis, mimetizando a abertura de janelas e a apresentação de paisagens quando afixadas na parede. Nessa série, Pimentel propõe que suas paisagens afetivas possam ser presenteadas, transportadas consigo ou exibidas em qualquer lugar que apresente outra – ou nenhuma – paisagem. Além dessa intenção, Acosta (re) apresenta a portabilidade como uma tecnologia humana.

Em “Topocampo (vertical)” e “Topocampo (quadrado)”, essas paisagens são vistas de cima, como campos topográficos em que não mais a linha, mas o plano do horizonte é apresentado de forma complexa, com sucessivos núcleos de aclives e declives. Acosta
propõe a representação do território, da paisagem e da volumetria da terra de forma ambígua: ao mesmo tempo que se configuram como diagramas de território, não são (apenas) representações do espaço, mas objetos espaciais/escultóricos em si mesmo. Temos, então, duas visões confrontantes, mas que se complementam no trabalho do artista: podem ser abordados como representações da natureza, em um aspecto mimético e referencial, mas também podem ser lidos como imanentes, em que o objeto basta em si, não necessitando indispensavelmente de outra coisa a que se refere. Essa discussão híbrida de que trata Acosta, que se refere tanto à dualidade entre referência e imanência, quanto à classificação da obra como “escultura” ou “objeto”, é de natureza semelhante à dos questionamentos levantados por Méret Oppenhein (1913-1985) em “Object (Le Déjeuner em fourrure)” (1936).

O trabalho de Acosta nos alerta que nos afastamos cada vez mais de perceber que os dispositivos comunicativos, linguísticos e representacionais utilizados pelo ser humano são tecnologias de altíssima sofisticação, além de serem extremamente diversos na pluralidade dos leques culturais – a canônica dualidade antropológica entre natureza e cultura vira uma amálgama híbrida, onde esses dois agentes se confluem. Pensar esses hiperfluxos na arte contemporânea permite a desaceleração de dinâmicas generalizantes e a atenta observação de seus funcionamentos, com pontos críticos que saltam aos olhos e que visam ser debatidos pelo artista. Acosta permite, a partir desse conjunto de trabalhos, repensarmos as noções de natureza e paisagem e escaparmos das amarras representacionais voltadas ao horizonte: lembremos que a representação da natureza pelo ser humano é, portanto, uma meta-ilusão.