Um tanque de guerra posicionado na praia de Copacabana é como um carro alegórico, declarou a antropóloga Jacqueline Muniz em sua análise sobre a presença do exército nas ruas do Rio de Janeiro em 2018, na mais recente das ocasiões em que as forças armadas foram chamadas para proteger a ordem na cidade desde a transição brasileira para a democracia há pouco mais de três décadas. Para Muniz, a intervenção federal na segurança pública do estado fora concebida para atender a fins políticos, eleitorais e midiáticos, e não teria qualquer eficácia real no combate ao crime organizado. Em sua lógica teatral e de confronto, ela se tornaria, assim, representativa da polícia de espetáculo do Rio. As operações policiais de guerra nas favelas da cidade, e sua cobertura nacional e internacional, reordenam simbolicamente o espaço urbano e reiteram a criminalização de grupos sociais e territórios tidos como perigosos. Mas se o espetáculo da guerra ao crime visualiza heróis e vilões, sua legitimidade é contestada por perspectivas como as de moradores de favelas vitimados repetidamente por suas operações, para quem, entre balas perdidas e execuções extrajudiciais, as fronteiras entre polícia e crime se borram.
A presença de tanques em patrulhamento no Rio se tornou ponto de partida para a criação de uma série de esculturas quiméricas, por Igor Vidor, na forma de espécies de objetos de cena. Em “Besta-fera (série Alegoria do terror)” [2020], olhos de crocodilo, asas de águia, dentes de cachorro, chifres de bode, entre outros, ganham a textura de seu suporte de fibra de aramida – material utilizado na fabricação de equipamentos a prova de bala – sobre o qual as imagens impressas se encrustam. A obra consiste em uma escultura de estrutura linear de aço construída na forma do contorno combinado de três escudos de forças policiais de São Paulo, portando imagens de corpos fragmentados de diferentes animais, reunidas a partir do levantamento de figuras contidas em brasões de forças policiais estaduais brasileiras. Entre os escudos cujos contornos integram sua estrutura se encontra o da ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), unidade criada durante a ditadura militar para combater o “inimigo interno”, que ganhou fama como a polícia mais letal do estado. Ao invés de desfeita após o fim do regime, a ROTA direcionou suas atividades para o crime comum, mantendo sua prática de execução blindada pela impunidade.
A transição de ditaduras militares para regimes democráticos em países da América Latina, nos anos 1980, é marcada pela manutenção de sistemas de justiça autoritários, e pelo aumento da violação de direitos de cidadãos pela violência policial. No Brasil, a manutenção da estrutura militar da polícia frente ao crescimento do crime significou uma intensificação das práticas repressivas do estado em um novo contexto moldado pelo capitalismo neoliberal. Contra este pano de fundo, a violência urbana no período democrático é assunto para o corpo de trabalhos apresentados pelo artista em sua individual na Künstlerhaus Bethanien, em Berlim. Os trabalhos em “Alegoria do terror” abordam um ciclo de violência complexo que, de acordo com a antropóloga Teresa Caldeira, é gerado por “abusos por parte da polícia, as dificuldades da reforma da polícia, a deslegitimação do sistema judiciário e a privatização da segurança… [e constitui] o principal desafio à consolidação da democracia”. Através da manipulação de símbolos, materiais e objetos, Vidor explora questões como as execuções extrajudiciais, o comércio de armas e o encarceramento em massa, estabelecendo um contraponto a narrativa da guerra ao crime.
Se as hibridações contraditórias do espetáculo da violência – entre democracia e autoritarismo, polícia e crime, e segurança e proteção – são traduzidas pelo artista em composições quiméricas que enfatizam sua monstruosidade multidimensional, tal lógica composicional se estende para o conjunto de trabalhos apresentados, que se complementam e ressoam uns nos outros em sua elaboração das muitas faces do fenômeno da violência urbana. Dois documentos de pesquisa, de mesma medida e exibidos sob filme vermelho, são apresentados justapostos e fornecem uma âncora contextual para as obras no encontro entre um mercado de proteção globalizado e o terror policial. O primeiro consiste em uma brochura da empresa Teijin Aramid, baseada na Holanda, que apresenta estatísticas sobre roubos de veículos e o crescimento da demanda pelo serviço de blindagem de carros em São Paulo, para o qual desenvolve e fornece materiais; já o segundo, consiste em uma fotografia em negativo de um soldado do BOPE (Batalhão de Operações Especiais) que porta um crânio de cabra, preso em seu colete com um mosquetão, durante uma operação no morro da Mangueira, no Rio.
Nascido em São Paulo, Igor Vidor radicou-se no Rio de Janeiro em 2012, onde produziu, nos últimos anos, um extenso corpo de trabalhos informado por sua pesquisa sobre violência urbana, culturas de armas e desigualdade social. Trabalhando entre diferentes meios, como vídeo, escultura e instalação, suas obras incluem objetos como armas de brinquedo artesanais e cápsulas de projéteis, coletados em territórios economicamente despossuídos. Após a repercussão de sua exposição individual em São Paulo, em 2018, Vidor se tornou alvo de ameaças de morte por milicianos em um momento de polarização política, marcado pela censura e perseguição às artes no Brasil, capitaneada pela direita em ascensão. Sua mudança para a Alemanha se dá então como autoexílio, poucos meses após a eleição como presidente do capitão reformado do exército Jair Bolsonaro, cujo gesto de simular armas de fogo com as mãos se tornou símbolo de campanha. Refratário aos direitos humanos e às políticas de ações afirmativas, e um defensor da flexibilização do acesso a armas e munições, Bolsonaro explicitou em inúmeras aparições públicas durante a sua carreira política a sua apreciação pelas práticas repressivas do regime militar e pelo vigilantismo miliciano, juntando-se ao atual rol de líderes mundiais tidos como ameaças às democracias de seus países.
Durante o período de sua residência em Berlim, o processo de pesquisa de Vidor incluiu visitas a fabricante de armas alemã Heckler & Koch – cuja submetralhadora MP5 fora usada por milicianos para assassinar a política e ativista dos direitos humanos Marielle Franco no Rio de Janeiro – e experimentos em ateliê com materiais utilizados na produção de equipamentos balísticos e projéteis, como a fibra de aramida e o chumbo, que incorporou em seus novos trabalhos. “Câmbio flutuante #2” [2020], por exemplo, inscreve o problema da violência em dinâmicas globais. Constituída por um conjunto de retalhos de bandeiras nacionais com logos de fabricantes de armas e silhuetas de armas de fogo impressos, costurados e suspensos a partir do teto com fios de chumbo, seus cortes e junções se alternam entre as linhas geométricas de blocos de cor e os contornos e silhuetas de logos e armas, fundindo suas formas em espaços positivos e negativos, vazados. Contra o pano de fundo da proliferação de armas na América Latina, os fragmentos embaralhados de bandeiras, dentre as quais as do Brasil, dos EUA e da Alemanha, refletem as rotas estabelecidas pelo comércio global de armas. Em flerte com a abstração, a obra transforma seus símbolos partidos em peças de um quebra-cabeças do poder, ecoando os arranjos e dinâmicas entre estado e capital.
Se a defesa da ampliação do acesso a armas e da autorização para matar se amparam em uma retórica de segurança, a pesquisa na área aponta para sua promoção da violência e a fragilização da segurança pública. De acordo com o antropólogo Luiz Eduardo Soares, a licença para a execução extrajudicial está na base da economia da brutalidade policial no Brasil. A partir dela surgem os nichos de policiais que se autonomizam para matar e vender a vida, e que se organizam em grupos de extermínio e em milícias, expandindo suas atividades do domínio territorial à penetração na política. Para Soares, a consolidação da hegemonia das milícias no país, no contexto do governo Bolsonaro, torna polícia e crime indistinguíveis. O etos do punitivismo vigilante a permear a violência na região, então, é capturado em uma formulação sintética em “Sem título (Pensamentos de Wayne)” [2020]. A obra consiste em uma impressão digital que reproduz um balão de diálogo apropriado de uma história em quadrinhos de super-herói, no qual “criminosos são um grupo de covardes supersticiosos” contra os quais se deve “infligir terror em seus corações”.
Na contramão da retórica da proteção dos direitos de cidadãos coagidos pelo crime, as coreografias das invasões policiais em favelas ostentam apenas significantes da morte, observou a pesquisadora Denise Ferreira da Silva. Em “Sem título (Gotham continua a mesma)” [2020] – um guarda-chuva preto retorcido, caído em um canto do espaço expositivo – Vidor faz referência a um evento recente na cidade do Rio de Janeiro, no qual um homem negro foi assassinado pela polícia por portar um guarda chuva, supostamente confundido por um fuzil. Como objeto, o guarda-chuva aparece antes na obra do artista em “Ordinários n.1” [2018], em meio a outros objetos confundidos por armas de fogo pela polícia, em eventos que culminaram na morte de seus portadores, a refletir as inúmeras mortes que não cessam de ser produzidas pelo terror do estado. A racialidade é central nesta dinâmica, argumenta Silva, pois opera como justificativa para o assassinato e como impedimento para a deflagração de uma crise ética – é por sua lógica de diferenciação que estes corpos e territórios sempre já significam violência. A distinção entre aqueles a quem as forças do estado devem ou não proteger, aponta a autora, implica na suspensão dos direitos de moradores de favelas em momentos de conflito entre o estado e o tráfico.
Na guerra ao crime, ainda, políticas de drogas e modelo de policiamento se combinam no fomento do encarceramento em massa, que atinge negros e pobres moradores de periferias e favelas. Na medida em que as prisões encarceram corpos de residentes de favelas, e as favelas são transformadas em prisões, “com helicópteros a sobrevoar as cabeças, blitz frequentes, mandatos coletivos de busca, detenções e assassinatos… a divisão entre as duas referências geográficas se [borram]”. Contra este pano de fundo, “Teresa e a Moira” [2020] aborda a questão da agência entre um horizonte de liberdade e o ‘destino traçado’. A escultura consiste em uma corda suspensa desde o teto, feita de lençóis e fibra de aramida torcidos e amarrados, comprimida por um fio de chumbo que a circunda em toda sua extensão, deformando seu material macio. As tensões contidas do trabalho se revelam em camadas, das técnicas de improvisação de cordas utilizadas em fugas de presídios à constrição evocada através da figura da Moira, uma das deusas que na mitologia grega tecem e interrompem o fio da vida.
Para o artista, o uso do tecido se estende, em seu aspecto semântico, à noção de tecido social, uma vez que esta “estabelece um terreno comum para o uso dos lençóis e da aramida, assim como os fatos sociais são produzidos em uma dinâmica comum de circulação de armas e de exclusão”. Coletados em territórios vulneráveis no Rio de Janeiro, onde foram utilizados para cobrir corpos de pessoas mortas em conflitos armados, eles se tornam índices da violência sistemática infligida sobre moradores de periferias e favelas pelas forças do estado. Em um momento marcado pela ascensão de governos autoritários e pelo escrutínio público do racismo antinegro e da violência policial através dos territórios da diáspora africana, “Alegoria do terror” escava os limites da democracia na implementação dos direitos civis e humanos universais.
Ao abordar a violência urbana no Brasil por meio de registros múltiplos, as composições quiméricas de Igor Vidor inscrevem sua complexidade e interrompem o discurso heróico da guerra ao crime, trazendo para o primeiro plano, como contraponto, seus crimes de guerra. Combinando objetos de uso cotidiano com materiais e símbolos ligados ao estado e à indústria global de armas, o conjunto de obras recusa a reprodução de imagens do espetáculo que circulam nas mídias de massa, e sua reiteração do olhar criminalizante sobre territórios e corpos racializados. Ao fazê-lo, as composições quiméricas exploram a incongruência do discurso democrático e do terror policial, expondo o legado vivo do autoritarismo. Ao mesmo tempo, sua articulação convergente revela o continuum ideológico que subjaz o estado de exceção no período democrático, entre governos em diferentes posições no espectro político, situando, no interior da democracia liberal, o duradouro legado colonial da escravidão.