AGORA SOMOS NÓS
“De onde falamos hoje em dia? De uma terra com história ou de um novo terreno descoberto por outros? Hoje falo situada geograficamente no Sul, mas muitas vezes parece que me valido falando a partir do Norte, como seguindo um pensamento que nos guia a matriz do dominador.”
Hija de Perra
Pensando nos processos históricos pelos quais o discurso do colonialismo se estabeleceu – e não só – pela produção de imagens e palavras específicas com a intenção de (in)formar uma cultura própria, ainda hoje, é comum vermos a reatualização e reencenação de certos padrões não-conscientes, como a violência por exemplo, na dinâmica social do nosso dia a dia.
Certas representações visuais na discussão sobre a violência nas artes muitas vezes são (re)construídas e propagadas de forma inconsciente por artistas, porque há uma imensa dificuldade em construir uma nova narrativa que não seja fundamentada pelo grande delírio colonial que foi incutido em nossas mentes e, mais ainda, em entender como é difícil de repensar o nosso olhar dentro da construção da própria imagem em si.
E o “nosso” mundo foi construído a partir de uma enormidade de mortes – de civilizações, de populações, de culturas, de línguas, de espécies etc. – que serpenteiam ainda entre os nossos pés e, por isso, muitas dessas imagens (re)construídas e propagadas funcionam como estruturas ideológicas saturadas de colonialidade que atuam na naturalização da condição da violência, já que permitem que uma certa dinâmica social e hierárquica corriqueira de poder seja constantemente mantida, regularizada e consolidada. A perpetuação contra determinados corpos – trans*, homossexuais, negros, indígenas, asiáticos etc. –, imaginados e observados no decorrer do tempo pela retina cisheterocolonial branca eurocêntrica e norte-americocêntrica das ciências naturais, sociais e humanas, legitimou esse poder em toda sua amplitude histórica, temporal, geográfica e disciplinar, bem como contribuiu na criação de seus paradigmas epistemológicos, gerando assim buracos na História e silêncios na representação.
E não é muito diferente de como o pensamento de muitas pessoas autoras queer do Norte Global – que refletem uma subversão da norma muito apenas do ponto de vista da sexualidade e do gênero não interseccionando em si com os marcadores de raça/etnia e de classe, bem como não se situam em sua localização – atua também – que nem uma “caravela queer” nas palavras de Jota Mombaça – colonizando, ainda hoje, a nossa forma de pensar, uma vez que a colonização, por exemplo, nem sequer foi cogitada como um dado relevante dentro de muitos desses escritos e, desse modo, nota-se que, quando a teoria queer viajou do Norte para o Sul Global, ela foi capturada pela colonialidade do saber, operando no apagamento das experiências – inclusive de conhecimento – que se apresentavam no nosso contexto, até porque práticas de resistência ao binarismo sexual já existiam aqui em tempos anteriores. Além disso, a teoria queer é vista radicalmente como pós-identitária, não servindo cruamente em si para a nossa realidade porque no nosso fazer político precisamos ainda construir estratégias (de sobrevivência) que partam da identidade.
Foi preciso, então, uma mudança textual do queer para o cuir para demarcar, como declarou Sayak Valencia, a ação da dissidência sexual e de gênero, e seu deslocamento geopolítico e epistêmico rumo ao sul. E esse cuir decolonial e interseccional como situação queer do Sul vai apontar que existe uma condição existencial por detrás da nossa condição geográfica, considerando que todo o seu pensamento é localizado – ou seja, é situado dentro de uma experiência, de um contexto histórico e de um enquadramento de vida –, e é claro que isso é muito importante para nós pessoas artistas considerarmos no nosso dia a dia. Por que, afinal, como é que vamos assumir leituras e críticas sobre o mundo e o nosso contexto a partir de um olhar que não é situado? À vista disso, não há pensamento abstrato que surja do nada, porque todo pensamento é uma vinculação étnico-racial, sexual, de gênero, de classe etc., e é claro que tudo isso transborda de certo modo no nosso fazimento artístico, e quem “apaga” esse atrelamento lamentavelmente está politicamente criando um mito da verdade universal no que faz. E também é considerável apontar que cada pessoa produz conhecimento do lugar onde seus pés pisam.
Pra terminar este breve texto, aponto que a exposição Cuir Sou; notas sobre afetividade iniciou-se com a criação de uma agenda afetiva pela Verve Galeria com base na resposta de cada proposição artística apresentada de trinta e quatro artistas de diferentes gerações e linguagens em contraposição aos modos de subjetivação e veracidade da sociedade capitalista, contribuindo amorosamente também com a edificação de mais práticas epistêmicas cuir decolonial e interseccional no terreno do silêncio da História, bem como com outras formas possíveis de fazer mundo onde nossos corpos-sujeitos sigam vivos e centrais contando suas próprias histórias, e não na qualidade de meros objetos como antes à margem da oficialidade das narrativas ora maltratados e mal representados, ora soterrados, silenciados e esquecidos. E nas palavras de Toni Morrison: “Para que serve o mundo se a gente não pode inventar ele do jeito que quiser?” Encontra-se, então, um convite para que possamos imaginar viver num mundo onde todos.as.es nós possamos ser quem somos entre conexões e interlocuções afetivas.