1. Beba-me
A etiqueta “Beba-me” inaugura uma sequência de transformações corporais vividas por Alice – ao todo, 12 mudanças de tamanho –, necessárias para enfrentar os desafios no País das Maravilhas. Esse vaivém entre crescimento e encolhimento opera como fio condutor da narrativa e metáfora para o processo de amadurecimento físico, emocional e emancipatório de Alice. O que, no fim, é revelado como um grande sonho se apresenta de início como um encontro com as profundezas, regido pela lógica inversa à da superfície.
Lewis Carroll incorpora esse lugar como contestação e escape por meio da descrição dos personagens, das inversões de papéis desempenhados pelos seres e objetos inanimados, dos jogos de poder e dos artifícios do gênero literário nonsense, elementos usados para contribuir com a paródia dos sistemas de codificação e controle vigentes.
Longe de representar o caos, o nonsense vivido por Alice opera dentro de uma ordem, na qual a lógica do outro sentido está a se refletir no espelho. Não se trata de um antídoto, apenas um complemento da mesma linha de acontecimentos – a realidade duplicada à sua imagem.
por Marina Schiesari
2. Além do espelho
A consistência do eu e dos objetos não está dada desde o nascimento. A possibilidade de apreender o corpo próprio como uma unidade minimamente separada do mundo é algo construído. A depender de fatores ambientais, genéticos, do processo de mielinização na criança, surgem contornos, bordas que regulam como somos afetados.
No entanto, como bem dá a ver o trabalho de Luisa Malzoni, não se trata de um processo estável, contínuo, menos ainda definitivo. Seja numa crise, na adolescência, num episódio de angústia, no retorno de um trauma, num momento de dissociação, somos lembrados de que há sempre um resto, uma conta que não fecha na maneira como cada pessoa consegue se identificar com o imaginário do corpo.
Em vez de tentar velar esses estados de estranhamento, as obras de Luisa Malzoni nos mantêm neles, no além do espelho plano, em formas e perspectivas porvir.
por Ivens Queiroz Cavalcante
3.
D-o-b-r-a-r
B-o-r-d-a-r
Luisa Malzoni movimenta sua pesquisa artísticas com os anagramas (característicos ao gênero nonsense) “dobrar” e “bordar”, que compartilham a composição, para designar o ato de transbordar: exteriorizar o interno. Para ela, dobrar equivale a espelhar: multiplicar para seu avesso; bordar, ultrapassar a superfície ao estender o desenho a seu verso.
Ambos os gestos a atuar ao alcance das mãos – proporcionada pelos transbordamentos da própria artista – não se encerram no plano simbólico: são acionados pelos materiais que compõem sua tridimensionalidade. O tensionamento da ordem, o deslocamento de sua origem e o alargamento de seu perímetro são suscitados por cartas, tabuleiros, estampas de tecido em contato com os prendedores de negativos fotográficos e molduras transparentes de acrílico. Assim, as obras e seus suportes compõem camadas de métricas, inventadas e impostas, de sentidos e de suas inversões.
por Marina Schiesari