Novas representações
02.12.2021-19.02.2022

Novas representações

Ana Beatriz Almeida, Daniel Acosta, Fefa Lins, Shai Andrade 02.12.2021-19.02.2022
"Novas representações", por Mateus Nunes

ANA BEATRIZ ALMEIDA (1987, Niterói – RJ)

Em seu trabalho indissociável de performance e pesquisa, Ana Beatriz Almeida retoma caminhos que foram planejadamente aniquilados pelas dinâmicas da colonização ocidental. Nos últimos anos, a artista se dedica à investigação e à pratica de ritos e danças de origem africana que propõem diálogos sobre a divinização e o corpo, a cura e a morte, o sacrifício e a passagem, a força vital e o feminino, a natureza e a escravidão negra no Brasil. Nesse amplo campo que se encontra entre os polos e as limitações epistemológicas causadas pela estrutura do pensamento eurocêntrico, Almeida propõe pontes de continuidade a partir do resgate e da permanência das narrativas africanas em terras brasileiras. Essas pontes – afetivas e ancestrais –, traçadas continuamente em uma série de performances da artista ao longo de uma década, conduziram-na ao encontro de sua família no Benin.

A artista apresenta um vínculo intrínseco entre os planos materiais e espirituais nas estruturas de pensamento de diversas culturas de origem africana. Essa ligação, inclusive, atesta o cisalhamento imposto pelas dinâmicas políticas embranquecedoras que separaram até o que era impensável de ser dissociado: o corpo e o espírito. Em processos em que o corpo e os nomes estão juntos, Almeida reafirma que estes corpos, historicamente subjugados, portam nomes régios, divinos. Nos seus rituais de entrega, navegam pela natureza através de fluxos naturais e sobrenaturais, num movimento de ida que, simultaneamente, é de regresso. Volta, então, o corpo dignificado, ritualizado e ornamentado, restituindo-lhe tudo que lhe foi violentamente tirado nas dinâmicas de opressão às sociedades africanas nos embates coloniais, que se perpetuam estruturalmente na contemporaneidade.

Com um trabalho pungente por sua precisão, Almeida opera neste ponto de solda entre a antropologia, a etnologia e a performance, resgatando narrativas e imagens interditas na usual forma de contar a história de formação do Brasil, com enfoque no recôncavo baiano. Desterritorializa e descoloniza forças brasileiras em que o espiritual e o material são um só. Chama seus ancestrais pelo nome, escrevendo em seu corpo uma história extremamente densa e complexa, consolidada por milênios. Reitera um reinado existente, como se limpasse o solo sobre as raízes milenares de uma árvore há muito tempo cortada, que novamente floresce.

 

DANIEL ACOSTA (1965, Rio Grande – RS)

Daniel Acosta explora a espacialidade em uma escala ampliada, desde o aumento proposital de motivos usualmente ornamentais e em pequena escala, até a própria relação humana com o espaço público, com a cidade e com o meio ambiente. O artista propõe pensar o espaço através da plataforma da escultura, mas para além das usuais escalas menores. Ao fazê-lo, propõe um questionamento da tenuidade que separa as classificações contemporâneas entre escultura e instalação, com uma abordagem artística transdisciplinar com a arquitetura, o design, a geografia e a fenomenologia do espaço.

Uma das preocupações centrais do artista é a relação dos espectadores com suas obras no espaço, tornando-os, de certa forma, usuários. Acosta pensa o espaço ao retratar suas florestas e paisagens naturais em materiais sintéticos, permitindo o questionamento das interferências humanas no ambiente natural, reiterando que a própria noção de naturalidade é artificial.

Afinal, as intervenções humanas no ambiente deveriam ser consideradas naturais, na medida em que o ser humano molda o espaço às suas necessidades, como membro de um ecossistema? A artificialidade seria inerente à produção humana e à sua visão de natureza? A obra de Acosta possibilita uma leitura crítica quanto à insustentabilidade do trato humano com o meio ambiente, além de um estímulo a repensar maneiras justas de como os cidadãos se relacionam com o espaço das efervescentes cidades em que vivem.

Com um tom irônico, Acosta por vezes utiliza materiais extremamente estandardizados, como fórmicas que imitam madeira cortadas com máquinas a laser, para representar uma paisagem natural selvagem. A hostilidade não se encontra na selvageria da floresta, mas no pensamento agressivo do homem contemporâneo e nas suas dinâmicas de produção e de ocupação do espaço. Massas verdes de folhas que coroam copas de árvores se tornam planos vetoriais coloridos, convertidos a uma linguagem tecnológica para que máquinas pudessem replicá-los irrestrita e insustentavelmente.

O artista propõe esses recortes naturais que podem ser transportados, assim como nas tradições islâmicas, onde os tapetes funcionavam como jardins portáteis que poderiam ser levados a qualquer lugar, afim de que se mantivesse uma relação de veneração ao cuidado da natureza através da jardinagem. Revisita, na história da arte, a temática da representação de paisagens na pintura, na gravura e na fotografia, usualmente melancólicas. Ao olharmos essas paisagens portáteis, ao invés de escaparmos do mundo urbano – no sentido latino de fugere urbem –, somos reinserimos na artificialidade impressa pelo ser humano na paisagem.

O trabalho de Acosta nos alerta que nos afastamos cada vez mais de perceber que os dispositivos comunicativos, linguísticos e representacionais utilizados pelo homem são tecnologias de altíssima sofisticação. Pensar esses hiperfluxos na arte contemporânea permite a desaceleração dessas dinâmicas e a atenta observação de seus funcionamentos, com pontos críticos que saltam aos olhos e que visam ser debatidos pelo artista. A representação da natureza pelo homem é, portanto, uma meta-ilusão.

 

FEFA LINS (1991, Recife – PE)

Fefa Lins propõe novas formas de lidar com complexidades contemporâneas, questionando e operando classificações estigmatizadas sobre história da pintura, discussões de gênero e sexualidade e impactos da tecnologia nos dias atuais. A individualidade do pintor é reiterada ao nos apresentar formas múltiplas e híbridas de observarmos os fenômenos das imagens atuais através de uma plataforma canônica: a pintura a óleo sobre tela. A escolha dessa plataforma pode ser lida como uma crítica às limitações que certas ferramentas artísticas se restringem por amarras históricas e sociais.

As discussões tecnológicas engendradas por Lins ultrapassam as discussões sobre o corpo e ampliam-se também ao âmbito da comunicação digital e das redes sociais. Uma das mais inteligentes estratégias de contestação ideológica é aprimorar a tecnologia imposta pelo opressor e revertê-la, à contragosto, à sua origem. A metarrevisão de tecnologias humanas como a psicanálise, os sistemas simbólicos falocêntricos e as estruturas sociais patriarcais criticam, assertivamente, pontos nevrálgicos dessas construções. No trabalho de Lins, repensar a sociedade sempre cambiante é representar, também, a si mesmo em plena transição. Como um espelho, Lins não somente expressa uma imagem refletida da presente  estrutura social, fazendo-a examinar suas próprias dinâmicas de vigilância e violência, mas também aciona seu corpo como imagem política, ao confrontar transições e fluxos reducionistas e proibitivos.

Nas obras do pintor, o frescor e a vivacidade das cores trazem uma intensidade acentuada para cenas e corpos negligenciados pela história. A força e a importância dos eventos individuais, tidos como corriqueiros ou banais, são acentuadas pelo intenso cromatismo de suas pinturas, com atmosféricas oníricas que transitam entre nuvens de algodão-doce e paisagens dantescas e ardentes. As cenas, usualmente particulares, em lugares íntimos como o quarto, o banheiro ou a cama, são escancaradas e compartilhadas com todos.

Com um pleno domínio técnico da pintura, da relação íntima da luz com os corpos e do uso de dispositivos atuais – como a fotografia digital – na composição de suas obras, o pintor reafirma a obsolescência de tecnologias que ainda tentam perpetuar classificações ultrapassadas, como a binariedade de gênero. As tecnologias de gênero e de sexualidade são sempre tecnologias vigilantes, acentuadas pela hiperconexão das informações na dadosfera. O trabalho de Lins estimula a centralidade do corpo periférico: não como alvo de patrulhamento, mas como protagonistas de narrativas até então veladas. Em um mundo quântico, o trabalho de Lins nos apresenta um horizonte plural, esperançoso e combatente que acolhe a multiplicidade do eu, tanto no corpo quanto no tempo.

 

SHAI ANDRADE (1992, Salvador – BA)

Através de um aparato reflexivo e espelhado, como a câmera fotográfica, Shai Andrade propõe uma reflexão crítica sobre o passado, escrevendo uma narrativa visual para o futuro. Essa dualidade epistemológica é uma análise crítica sobre o apagamento das histórias negras, somada à tentativa de embranquecimento dos frutos da mestiçagem e dos hibridismos culturais que acontecem no Brasil. As genealogias meticulosamente listadas das famílias brancas demonstram uma artificialidade engessada, contrastada e combatida pelo movimento amplo das forças fotografadas por Andrade.

Como um palimpsesto, pergaminho que é periodicamente raspado para dar lugar a um novo espaço de escritura, as histórias negras são continuamente vítimas de uma efemeridade das narrativas orais que as estruturam, perdidas em um sistema onde apenas o registro documental é tido como válido e consegue ser perene (o papel embranquecido, raspado, não seria um papel sem história?). Não nos enganemos: a iconoclastia da cultura negra é historicamente planejada.

Durante anos, Andrade registrou, através da fotografia e do vídeo, performances e expressões de artistas negros que compartilham dos seus mesmos valores narrativos. Recentemente, Andrade se colocou como artista, escrevendo sua própria narrativa ao investigar sua genealogia familiar, cultural e espiritual, retratando cenas do cotidiano que combatem o exotismo estereotipado que parasita essas imagens. A artista não propõe apenas uma investigação individual isolada, mas inserida em uma estrutura articulada que envolve diversas vozes, discursos e realidades. Como num ritual de cura, Andrade movimenta e glorifica essas imagens, que bailam e arrastam a luz nas suas fotografias, se comportando como entidades sempre presentes e que habitam entre o mundo da matéria e da ideia, reivindicando a divindade do humano e a humanidade do divino.

Nas fotografias de Andrade, os movimentos de afirmação e negação referentes à identificação histórica se afirmam com protagonismo. A artista devolve aos seus retratados o olhar que sempre foi negligenciado, usurpado à força pelas dinâmicas que giram em torno do homem branco. Não há, na fotografia de Andrade, o “fingir que não se vê”. Além disso, a artista questiona os paradigmas patriarcais que direcionam as dinâmicas sociais e propõe uma estrutura matrofilial, centrada na figura feminina como raiz das memórias coletivas. A dinâmica entre mestre e aprendiz, portanto, torna-se uma hierarquia respeitosa de sacerdócio feminino.

Andrade constitui, a partir dessas dinâmicas das narrativas intergeracionais, um patrimônio a ser herdado e resgatado. Em uma realidade em que quase tudo lhe foi tirado, a artista retoma a construção dessa herança cultural do povo negro, reconstruindo a casa, o templo, as estruturas, as luzes, as cores e a história.

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