Peça Farsa Pista; texto crítico de Veronica Stigger
05.04-24.05.2025

Peça Farsa Pista; texto crítico de Veronica Stigger

Letícia Lopes 05.04-24.05.2025
Texto Crítico: Veronica Stigger

A GRANDE ARANHA ECANDESCIA

“Mas o lustre! Havia o lustre. A grande aranha escandescia.”

Clarice Lispector, O lustre

Em meio a esse novíssimo e deslumbrante conjunto de pinturas de Letícia Lopes, destaca-se a representação de uma figura recorrente na produção da artista: o lustre. Em contraste com seus lustres anteriores, que se apresentavam com contornos mais distintos (seríamos capazes de dizer de quantas lâmpadas se compunham), este é menos definido e muito mais iluminado. Tampouco parece ser, ao contrário daqueles, um lustre doméstico: além de se mostrar mais portentoso, o fundo escuro sobre o qual brilha, rajado em ângulo oblíquo, dá a impressão de estar localizado num grande teatro (o rajado fazendo as vezes dos balcões) ― onde talvez esteja sendo representada a farsa a que o título desta exposição faz referência. 

O lustre ocupa todo o centro da pintura, de cima a baixo, formando um cone invertido, ao modo das tradicionais representações dos nove círculos do inferno descritos por Dante Alighieri em A divina comédia, como no famoso desenho de Sandro Botticelli. Sua perspectiva também se altera se comparada com a dos exemplares produzidos nos anos anteriores pela artista: não o vemos de frente, mas de baixo, em ângulo oblíquo. A estrutura central se inclina um tanto para trás, abrindo-se em direção ao espectador, como uma grande saia de babados das dançarinas de cancan oferecendo às vistas suas longas pernas ― e talvez um vislumbre, ou apenas a insinuação, do sexo. No entanto, a abertura aqui não fornece uma imagem nítida de seu interior: este não é mais do que uma massa clara sem forma determinada, encimada por um semicírculo de pura luz – um céu ensolarado? a saída do inferno? 

Aranha é como se denomina o corpo, usualmente metálico, de um lustre. O aracnídeo, conhecido por suas pernas finas e compridas, serve aqui de metáfora para essa estrutura de sustentação. O mesmo animal é tomado por Georges Bataille como uma das imagens do informe: “afirmar que o universo não se assemelha a nada e não é senão informe redunda em dizer que o universo é alguma coisa como uma aranha ou um escarro”. É exatamente uma aranha ― não mais o animal, mas sua imitação estrutural e utilitária por mãos humanas ― como imagem do informe que flagramos neste lustre de Letícia Lopes, por seus limites borrados, por sua superexposição (no sentido fotográfico) do objeto. É o que faz com que o enigma, aqui, não seja obscuro, mas luminoso, solar.

Mas essa não é uma regra ao longo da exposição. Observando as demais pinturas, percebe-se que a indefinição das formas – o informe – se constrói por meio de dois elementos antagônicos, que operam, porém, de modo complementar: a luminosidade e a escuridão. Se, no lustre, é o excesso de claridade que faz com que a estrutura interna do mesmo se torne indeterminada, é a falta de luz que, na cena noturna com a lua minguante, obscurece as formas. 

Mas cabe lembrar que há mais em jogo na noção batailliana de informe. O crítico e historiador da arte Yve-Alain Bois já chamou a atenção para como, nela, está implicada uma ideia de operação. Mas que tipo de operação é essa? A de desclassificar (déclasser): “informe não é somente um adjetivo que tem tal sentido mas um termo que serve para desclassificar”. Essa busca do desclassificado envolve, tanto em francês quanto em português, alterar o lugar previsível das coisas (e, com isso, também o seu significado), mas também rebaixar (trazendo, por exemplo, para a terra, para o chão, o que antes pertencia ao céu, ou pelo menos ao teto).

Letícia Lopes dá um nome específico à operação de desclassificação que coloca em marcha no conjunto de pinturas aqui exibido: farsa. Gênero teatral constituído no Medievo, como intermezzo cômico dos mistérios (dramas de fundo religioso), a farsa normalmente tem como ponto de partida alguma trapaça ou artimanha que leva ao engano, ao engodo. Nos trabalhos de Letícia Lopes, a falta de definição das figuras e das cenas apresentadas funciona nesse sentido, criando um estranhamento na percepção: o lustre evoca uma representação do inferno, o aquário lembra um pântano, o ambiente interno parece estar repleto de galhos, estabelecendo uma proposital confusão entre dentro e fora etc. 

Mas não há nada de cômico aqui: pelo contrário, é como se a farsa, extrapolando o intervalo reservado a ela e confundindo-se, no limite, com o universo, fosse a forma mais apropriada para dar conta de um mundo a caminho do fim. Não por acaso, já nenhuma figura humana habita essas telas. A grande aranha, porém, ainda escandesce: inumana e não menos inanimal, imagem do que ainda não podemos ou não queremos ver de todo, a peça que faltava, a pista ― que também pode ser a de uma estranha dança entre espectador e telas ― que nos conduz à revelação do pesadelo como matéria do mundo e da pintura.

Veronica Stigger

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