Em Videogame, 2023, pintura de Adriel Visoto, vemos uma figura masculina entretida com seu jogo no interior de um apartamento classe média, sem maiores particularidades. Uma intrigante cena corriqueira como outras obras do artista, um novo fragmento para sua narrativa intimista e original sobre a vida doméstica e a cidade grande, o tema da sua produção. Entretanto, um olhar mais atento poderá perceber sobre a luz esverdeada, monocromática, que ilumina toda a composição e confere a ela uma estranheza meio onírica, a presença de três quadros na parede do fundo: da esquerda para direita, Alberto Guignard (1896-1962) Retrato de menina, 1960; Gerhard Richter (1931), da série Grün-Blau, 1993, e William Turner (1775-1851), Dutch boats in a gale, 1801. Esta apropriação, tão precisa nas referências, articula um extenso arco da história da arte, três grandes momentos da pintura para decorar um silencioso ambiente familiar: o modernismo, a sua superação e o romantismo. Desta forma o artista faz uma homenagem aos mestres históricos, e, ao mesmo tempo, afirma seu alinhamento e compromisso com a tradição e com um exercício específico da sua arte.
Os trabalhos do Adriel são quase sempre associados às práticas e ao imaginário de artistas como Edward Hopper (1882-1967), David Hockney (1937) ou Paul Cadmos (1904-1999). Entretanto elas vão além das referências deste repertório figurativo, urbano, queer, e remetem à uma tradição secular da pintura com origem na Idade Média: as elaboradas imagens em miniaturas nos livros iluminados, que não tratavam apenas das vidas dos santos e olhavam também para a vida real. Segue nesta linha o legado da pintura flamenca implementado com a exploração das tintas à óleo, dos vernizes, para criar efeitos radicais com a luz. Ela inaugura um olhar mais acurado, naturalista, sobre o mundo, principalmente depois da Reforma Protestante (1517-21), percebido no detalhamento de cenas urbanas – jogos, festas, trabalho, comércio –, assim como da vida doméstica e, com ela, o gosto pelos temas decorativos tipo naturezas mortas e paisagens. Esta produção, com um espírito predominantemente laico em oposição aos grandes painéis religiosos, a pintura histórica e retratos da aristocracia, caracteriza-se pelos pequenos formatos, facilitando assim o seu consumo e circulação em espaços de intimidades e afetos. Daí que também decorre das tintas à óleo uma produção e mercantilização infinita de mementos diversos em retratos, flores, lugares, aforismas, sobre suportes de tela, madeira, couro, vidro, porcelana entre outros. E foi assim, objetos preciosos e singulares, que miniaturas e pequenos formatos – sempre próximos das mãos, do olhar, do corpo – atravessaram os tempos guardando memorias, e persistem, conceito e forma, entre as práticas da pintura contemporânea.
Nas séries recentes Achados e perdidos (2021) e Mono (2022-23) – desta última saem os trabalhos em exposição – pode-se ver mudanças significativas nas pinturas do Adriel. Inicialmente elas mostravam interiores domésticos saturados de detalhes e cores diversas, com um cunho mais literal ou narrativo. Agora predomina um pensamento de desenho, abstrato, que organiza a composição, jogando com espaços vazios e construindo planos de uma arquitetura própria de cada trabalho. Ao mesmo tempo ordenando e limpando detalhes à maneira de uma obra holandesa, só que com a paleta de um monocromo para dela escavar o sentido básico de luz e espaço (Cômoda e Natureza morta com calendário e postal, 2023). Se antes elas eram algo ruidosas, agora as cenas impõem um silêncio, ganham ambiguidade, quase metafísicas (Vão, 2022, ou Faísca e Mezzanino e Metrópole, 2023). Preterem a ilustração, a retórica, para aprofundar a contemplação da pintura, porque são antes de tudo uma afirmação dela como experiência e linguagem. Adriel propõe tirar poesia das coisas simples.
Tudo começa na preparação da tela com uma base de várias camadas de tinta acumuladas e lixadas sobre o linho. É sempre uma cor chapada – verde, bege, amarelo, violeta, magenta – escolhida pela memória do lugar, da hora do dia, do flagrante captado que dá origem ao trabalho. Como um backlight, ela define a escala cromática para toda a pintura. Sobre ela o artista marca um desenho, uma imagem gerada anteriormente, com rascunhos a partir de fotos e vídeos pessoais.
Sempre em formatos menores – no estúdio do artista é notável também a predominância de pequenos tubos de tintas e pincéis –, o processo de pintar o quadro é para ser percebido, por um lado, como uma celebração da pintura, da construção dos seus efeitos, do esmero e precisão do artista na busca por uma superfície uniforme, sem petimentos, uma pele, verdadeira. Adriel não deixa marcas visíveis do trabalho manual. Resulta algo fotográfico, com um caprichoso jogo de claros e escuros (Terraço com espreguiçadeiras, 2023).
Entretanto, toda esta habilidade pictórica, esta “perfeição” de imagem, revela, por outro lado, uma perspectiva não tão otimista e quase irônica mesmo, sobre a condição da pintura hoje. Um traço peculiar da produção do Adriel é que a superfície pictórica não transborda em matéria e corrimentos. Ao contrário, nos limites do plano ela vai ficando rarefeita, surge um esgarçamento entre a matéria plástica e o suporte, deixando nos cantos e laterais o tecido cru exposto. Essa falha proposital contrapõe-se ao rigor formal da composição e do trabalho com o pincel, para apontar o indício de algo desestabilizador, um processo de erosão da pintura que confere a elas uma aparência de ruína, uma metáfora para sobreviventes (Fast food, 2023).
Adriel não pinta retratos, embora desenvolva suas series de modo incidental a partir de circunstâncias e eventos da sua vida pessoal e profissional. Pinta pessoas, personagens anônimos tipo ele, seu companheiro, eu ou qualquer expectador do trabalho. Os olhos delas nunca cruzam com o do observador ainda que o formato imponha uma proximidade do olhar, pois são para serem vistos um a um, de modo solitário tal qual suas personagens, na intimidade. As imagens mostram figuras congeladas, consumidas em si mesmo. Falam de uma solidão sem angústia, de acontecimentos ordinários e cotidianos (Chuvisco, 2023). Por isso podem ser associados aos milhares de registros e posts que circulam nas redes sociais: pela banalidade do que descrevem, pelo formato diminuto, pela delicada espessura da imagem e luminosidade artificial. Por conta do caráter intimista, doméstico, afetivo, elas podem sugerir uma narrativa de cunho autobiográfico. Mas não é o que importa. Se alguma história está inserida nestes fragmentos, por vezes cinemáticos, a sua reconstrução é deixada ao espectador, que projeta na tela uma experiência semelhante ou diversa daquela representada.
A produção do Adriel põe em movimento algumas questões que alimentam a visualidade hoje e em particular a prática da pintura. Sua inteligência reside no uso que faz da figuração como desafio e estratégia no enfrentamento às austeridades, asserção e macheza instaladas na pintura pelo monocromo minimalista. A figuração tem um efeito desviante, corrosivo daqueles princípios, introduzindo subjetividade, representação, sentimento no plano da representação. E o artista faz isso de forma elegante, sóbria e sedutora. Não há frivolidade ou protesto ao sugerir questões correntes no debate político-cultural como identidade, comportamento, erotismo. O sentido da obra é o de uma crônica afetiva que nos ensina olhar o tempo presente.
Todavia, se por um lado seus trabalhos evocam temas e questões compartilhadas nas telas de celulares e IPads, suas pinturas, por outro, resultam de um esforço contrário ao da geração de imagens na internet. Elas são minuciosa e obsessivamente produzidas, cada pincelada em seu lugar, num trabalho físico de dias até serem consideradas acabadas. Com isso abrem um hiato na dinâmica do espaço social, propondo um tempo retardado, contemplativo, de reflexão. Ainda que sob a perspectiva de decadência e ruína, elas insistem nas possibilidades da pintura como experiência sensível na constituição do sujeito e sua identidade. Nada grandioso, apenas o delicado estranhamento da beleza comum.