ACARÁ: delicadeza insurgente
belezas são coisas acesas por dentro*
texto curatorial por Ana Paula Rocha
Acará – do quicongo: kala, carvão ardente, brasa** – dá nome ao rito em que um naco de algodão, encharcado em óleo de dendê, é acendido com fogo para ser engolido por pessoas em transe. A ritualística tem por objetivo identificar as divindades inquices. A palavra também designa em terreiros preparações com feijão-fradinho, dentre eles o acarajé (“comer bola de fogo”), cuja técnica é parte integrante de um conhecimento, transmitido pelas mães pretas, baseado em laços comunitários e de afeto, dos quais as divindades integram o circuito de alimentação por meio da oferta de suas comidas preferidas.
Ao mesmo tempo, Acará, do tupi-guarani, nomeia diversas espécies de peixe – acará-bandeira, acará joia, acará do Congo, acará-açu, acará-cascudo – e por vezes recebe, no dialeto popular, o sentido de “peixe que morde”, uma provável referência a algumas subespécies agressivas. O peixe compõe as principais práticas, relações de troca e dietas de diversos povos indígenas. A partir dele, podemos tomar nota de aspectos de vigor e cuidado, próprios aos atos da pesca, do cozimento e do preparo.
Tema já discutido por Lélia Gonzalez,¹ não é possível explicar uma língua por ela mesma, tampouco é razoável desconsiderar a íntima relação entre o léxico e a estrutura de fala contemporâneos dos vocabulários incorporados pelas populações afro-diaspóricas ou originárias: daí falamos pretuguês. Na mesma trilha, Clóvis Moura² nos informa que, no Brasil, o colonizador evitava ao máximo que os africanos negros das mesmas nações permanecessem juntos, consciente de que a barreira da língua – sabemos hoje que cerca de 2.500 línguas são faladas no continente – dificultaria as possibilidades de organização dos escravizados. Para dar conta da separação dos corpos, essas pessoas em conjunto com as massas indígenas se depararam com a necessidade de criar um novo código entre seus pares, o qual Yeda Pessoa de Castro³ chamou de dialeto das senzalas.
Iniciando com a questão linguística, a matéria orgânica-inorgânica incutida em Acará tem a ver com um mundo de coisas em comunhão. Esse mundo interligado subverte uma idealizada separação entre natureza e cultura comumente tida por perspectivas ocidentais do conhecimento como a única profícua. Tal qual as notícias de jornal que diariamente mesclam questões de ordem política e de ordem natural,⁴ o que aprendemos, tanto com as tradições negro-africanas, quanto as indígenas, detém uma clareza sensível a qual tentou-se ignorar: práticas humanas e não-humanas se dão de modo interdependente.
Fogo
divino
Peixe.
Transe. Mordida.
feijão-afeto
A C A R Á:
está para a circularidade e para a coexistência entre aspectos de força e sensibilidade.
Na contramão, a historiografia nacional branco-centrada e seus arquivos institucionais estrategicamente rejeitaram esses dois aspectos dos grupos não-brancos, representando-os ora como conciliadores, ora como violentos. Esse tipo de abordagem é ironicamente criticada pela pergunta-paradoxo “negro: bom escravo, mau cidadão?”.⁵
A respeito do caráter conciliador, o processo abolicionista foi destituído do reconhecimento das disputas e lutas travadas, sendo elaborado historicamente como um movimento branco. Grande parte da iconografia construída sobre o Brasil perpetua a imagem de pacificidade dos escravizados. Na mesma trilha, houve um apagamento deliberado das mobilizações insurrecionais e seus líderes afro-indígenas durante as lutas por independência, fato que se tornou tema pulsante nas “comemorações” do bicentenário. Daí decorrem os esforços em reconstruir os atos e feições desses rebeldes, onde novos monumentos, retratos póstumos e suas histórias são objeto de reflexão e fabulação tanto na arte quanto nos movimentos sociais, reivindicando a pessoa não-branca como sujeito político ativo.
Já os gestos de beleza sofreram tentativas sistemáticas de serem arrancados das comunidades afro-diaspóricas, de modo a reforçar uma característica estereotipadamente bruta que até hoje se supõe acerca dessas populações. Isso foi possível por vias de restrição econômicas que persistem desde o pós-abolição e República – uma vez que as relações de poder-produção e infraestrutura econômica permaneceram as mesmas, passando da base escravista para a superexploração da força de trabalho. Mas também por tentativas diretas de proibir o uso de objetos materiais, inseridos também no circuito da devoção, como joias balangandãs, tecidos finos e estampas. A restrição desta materialidade escancara uma forma de violência simbólica tão ou mais perversa.
Essa visão estereotipada impactou os modos de tratamento dos nossos corpos, tendo como um de seus paralelos possíveis na contemporaneidade as censuras – veladas ou não – aos cabelos trançados, crespos ou adornados por turbantes desde ambientes escolares, até de trabalho. Ao contrário do que se tentou fazer crer, nossos cabelos exigem sensibilidade no desembaraçar, e a delicadeza do toque precisa ser redobrada ao se inserir os dedos entreabertos para que se sintam suas raízes. Esse gesto é acompanhado por um sutil tremor na pessoa que recebe o cafuné – termo aportuguesado do quimbundo kifune** – que se arrepia por, muitas vezes, estar desacostumada ao carinho do outro por essas bandas (vocábulo para lugar de origem de uma entidade na umbanda**). Ao mesmo tempo, o uso dos cabelos crespos adornados por turbante ou levantados por pentes-garfo desafia a ideia imposta pelo dialeto racista de manter o “cabelo comportado”, leia-se disciplinado, leia-se contido. A consciência dos próprios corpos passa pela reflexão acerca da sua beleza. Portanto, tomar partido dos seus usos estéticos é também uma tomada de posição política.
Essas discussões se reúnem nas obras e artistas da exposição coletiva ACARÁ: delicadeza insurgente.
Paulo Nazareth, lado a lado a um homem negro retinto, nos confronta ao perguntar a cor da própria pele numa fotografia P&B. Quando sua racialidade é questionada à luz do mito da democracia racial, a realidade se revela, como ele mesmo descreve em uma entrevista, escorrendo dos seus cabelos crespos. De maneira oposta, mas complementar, Ayrson Heráclito traz ao observador um espelho. Considerando o estágio transicional da identificação narcísica, revela-se, como apontado por Frantz Fanon, uma “forma de narcisismo em que os negros buscam a ilusão dos espelhos que oferecem um reflexo branco”.⁷ A pesquisa do artista acerca do dendê novamente aborda a impossibilidade da mistura pacífica sugerida nas teorias da miscigenação e, ao utilizar a expressão “barrueco” (pérola anômala), refere-se a um tipo de beleza que ele descreve como não clássica.
Ainda sobre o aspecto da autoinscrição, Eustáquio Neves oferece o retrato fora das chaves de exotização dos ritos de diferentes matrizes religiosas postos em prática por pessoas negras. Lita Cerqueira e Shai Andrade propõem o registro fotográfico à maneira que se levanta um novo monumento, ou seja, em fino diálogo com o território o qual ocupa, nesse caso: a rua em festa. Nessa delicada reunião de obras com caráter monumental, Emanoel Araújo, que mescla empreendimento abstrato com pesquisa acerca dos cultos afro-brasileiros, nos presenteia com seu relevo geométrico totêmico da cor projetada de Oxalá, enquanto Ana Beatriz Almeida materializa o divino – seus ancestrais paternos – em peça de roupa, mostrando na sobreposição entre indumentária e fotografia que as coisas não representam as pessoas, mas as constituem.⁶
Nádia Taquary, ao nomear a árvore-joia-iroko, objeto de beleza e devoção, evidencia a comunhão entre o divino, tempo e natureza, assentada nas árvores centenárias, tão viçosas quanto o celeste em Jaider Esbell. A partir da elaboração pictórica de práticas do cotidiano estabelecidas diretamente com o solo ou no terreiro, Maria Auxiliadora, com a sutileza de suas pequenas personagens, também partilha desse grandioso saber acerca da circularidade entre terra, gente e ritual, conhecimento o qual Moisés Patrício reflete sobre os encargos e responsabilidades imbuídas. Em Maria Lira Marques temos uma linguagem expressiva e um procedimento técnico de alta carga sensível que, ao mesmo tempo, se opõe vigorosamente às lógicas extrativistas do capital, capazes de devastar corpos e territórios inteiros, como o Vale do Jequitinhonha, local de onde ela é originária. Lógica capitalista esta que perpetua a exploração e o sofrimento dos corpos de modo contíguo ao período escravocrata, dolorosamente ilustrada por Sidney Amaral através da imagem da marca-açoite nas costas. Não nos deixando esquecer o atual sistema o qual estamos inseridos e suas implicações diferenciadas aos diferentes estratos sociais.
Inaugurada em diálogo com a individual de Carlos Martiel, Posesión (com texto crítico de Ayrson e Beto Heráclito), a exposição ACARÁ: delicadeza insurgente promovida pela galeria Verve, evidencia o duplo engajamento dos artistas reunidos, que criam propostas políticas tão rebeldes quanto carregadas de forte rigor e delicadeza estéticos. A mostra é um convite à reflexão e consciência crítica dos impactos socioculturais das violências de classe-raça, sem jamais abrir mão de uma perspectiva propositiva de liberdade e de deslumbramento incendiário do mundo.
Referências
* Trecho da canção Lágrimas negras. Composição por Jorge Mautner e Nelson Jacobina. In: Árvore da vida (1988).
** LOPES, Nei. Novo Dicionário Banto do Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2012.
(1) GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira, 1984. In: GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos, 2020. RIOS, Flávia; LIMA, Márcia (orgs.). Rio de Janeiro: Zahar, 2020: 75-93.
(2) MOURA, Clóvis. Dialética Radical do Brasil Negro . 2ª ed. São Paulo: Fundação Maurício Grabois co-edição com Anita Garibaldi, 2014.
(3) CASTRO, Yeda Pessoa de. Das línguas africanas ao português brasileiro. Afro-Ásia, Salvador, n. 14, 1983: 96.
(4) LATOUR, Bruno. The Pasteurization of The France. Cambridge, Massachusetts and London: Harvard University Press, 1988.
(5) MOURA, Clóvis. Negro, bom escravo, mau cidadão? Rio de Janeiro: Ed. Conquista, 1977.
(6) MILLER, Daniel. Treco, troços e coisas. Estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2013: 37.
(7) FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Bahia, Edufba, 2008: 15.