Batinga; texto crítico de Marina Schiesari
19.10-23.11.2024

Batinga; texto crítico de Marina Schiesari

Victor Fidelis 19.10-23.11.2024
texto crítico: Marina Schiesari

Sobem a ladeira com os tons âmbar e anil sobre a cabeça, assuntos vêm e vão, sem amolecer o ritmo do passo e nem da respiração. Seguem animados, pensando o que fazer quando chegarem em casa: reunir a família, tomar uma cerveja, receber os vizinhos, brincar com os irmãos, assistir à novela ou estudar. Esse foi o cotidiano de Victor Fidelis na Rua Batinga, Vila Mazzei, Zona Norte de São Paulo, entre os anos de 2003 e 2013.

De nostálgico sabor agridoce, a casa da avó reunia alegrias e amarguras quando habitada pelo núcleo familiar e suas esporádicas festas no grande quintal dos fundos. Aniversários, Natais, Anos-Novos e eventos da matriarca somavam parentes e agregados. Era uma socialização adulta de afetos acostumados. Assim, combinados a sutilezas somente notadas com proximidade, os olhares imaginativos se encontravam com as personalidades que lhes faltavam cotidianamente nos outros ambientes.

Batinga, primeira exposição individual de Victor Fidelis, retrata encontros marcados pelas cores terrosas dos fins de tarde de primavera e verão. Jovens corpos negros, trajados de pós-expediente ou pré-celebração, ocupam essas pinturas. Sempre próximos ou dentro de casa, refletem os encontros idealizados por Fidelis na sua juventude, limitada ao ambiente doméstico e com pouco contato com a sua comunidade. Trata-se de imagens construídas pelo artista que trazem consigo signos culturais, temporais e locais interligados à coletividade contemporânea afro-brasileira.  

Os corpos volumetricamente arredondados e os rostos inspirados no semblante do próprio artista carregam valores e detalhamento equivalentes às vestimentas e aos espaços abraçados. Elementos como o vaso de Alvar Aalto, o banco Mocho de Sergio Rodrigues, o piso de ladrilho hidráulico e as venezianas de alumínio dão indícios da sua formação como arquiteto. As indumentárias fluidas pertencentes à cena it-favela – assim nomeada por Tasha & Tracie* para a combinação de streetwear com acessórios e peças vintage – remontam ao período em que o pai do artista, representante comercial têxtil, vestia os filhos para o mostruário de seus produtos.

Do desenho à tela, identifica-se uma nítida colisão estética entre duas grandes referências da tinta a óleo: Di Cavalcanti, com suas figuras robustas e perspectivas distorcidas, Heitor dos Prazeres, com suas cores vivas e os vestuários que conferem dignidade aos representados – ambos artistas da primeira metade do século 20 foram retratistas de suas vivências; contudo, classificados em categorias diversas devido a marcadores sociais das diferenças incrustadas naquele período. Mesmo que o modernismo buscasse romper com a arte acadêmica e, para tanto, valorizasse elementos da cultura popular, isso não ocorria sem contradições. Imbuídos de um corpus figurativo semelhante, Di Cavalcanti foi visto como artista moderno emblemático e Heitor dos Prazeres como naïf (ingênuo), categorias carregadas de assimetrias e preconceitos. 

Apesar da notória contribuição de Heitor dos Prazeres, Wilson Tibério, Maria Auxiliadora, Paulo Pedro Leal, Madalena Santos Reinbolt, entre outros do mesmo período, a representação artística brasileira dominante permaneceu rica e atravessada pela experiência da branquitude, objetificando o exotismo cultural e as cicatrizes da escravidão. 

Consciente dos apagamentos e das violências contidos nessa formação nacional, Fidelis produz com intencionalidade e pensamento crítico, como ele mesmo descreve, “uma ferramenta considerável para traçar paralelos diretos aos modernistas, sobretudo ao entender que boa parte da imagem do negro brasileiro, cidadão, alforriado, se inserindo na sociedade, foi construída nessas correntes artísticas, que reforçaram, de modo positivo e negativo, os estereótipos”, e, por isso, “expandir as noções do que é ser negro brasileiro é um passo indispensável para a humanização”.

O deslocamento temporal de Fidelis permite recapitular as sutilezas presentes na arte popular de seus mestres naïfs, atualmente glamourizada como pop. Como exemplo disso, nas telas da exposição, os pés calçados de seus personagens – mesmo quando descontraídos no lar – relembram, a ele e aos outros, os direitos de hoje como frutos inegáveis da resistência de ontem, como Ricardo Aleixo bem contextualiza em “Álbum de Família”: 

Meu pai viu Casablanca três vezes (duas

no cinema e uma na TV). Meu avô trabalhou na boca da mina. Meu bisavô
foi, no mínimo, escravo de confiança.

Embora já se tenham passado 136 anos desde a abolição, no poema, as atividades das três gerações gradualmente se intensificam rumo à exploração do passado e, assim, traçam a recente conquista ao lazer. Por isso, a descontração representada por Victor Fidelis – corpos relaxados, bolsas jogadas no sofá, drinques e frutas tropicais – se transforma em um manifesto silencioso. Como ele diz: “Retratar pessoas pretas em descanso, aproveitando a trivialidade e o ócio, tem sido um importante motivo em meu trabalho, justamente por entender que há nessas trocas interpessoais banais resquícios de questões macro”. 

 

bell hooks, em seu livro Tudo sobre o Amor – Novas Perspectivas, discorre sobre isso: “A presença da dor em nossa vida não é um indicativo de disfunção. Nem todas as famílias são disfuncionais. E, ao passo que tem sido crucial para a autorrecuperação coletiva que temos exposto e continuaremos a expor a disfunção, é igualmente importante relevar e celebrar sua ausência”. Por isso, o modo pelo qual Fidelis opta por retratar o corpo em descanso se torna uma tentativa de tirá-lo da sustentação estrutural ao qual é tensionado diariamente.

 

O trauma coletivo permeado em sua pesquisa e as representações propostas evidenciam a busca por possíveis feridas e curas a partir da vivência em ciclos racializados. Nesse contexto, Cida Bento, seguindo a lógica do apoio mútuo, relata sua vida pessoal, de onde veio e onde esteve, para apresentar o livro Pacto da Branquitude. Como a primeira pessoa da família a concluir graduação, mestrado e doutorado, ao longo da carreira, compartilhou com os irmãos as questões e as estratégias do ambiente de trabalho. “Não tínhamos, na família, referências de profissionais que ocupassem cargos de comando em grandes organizações e, igualmente, estrutura para responder às exigências de espaços onde só a elite esteve. (…) O esforço para superar as barreiras se dava entre nós, como observamos em tantas outras famílias periféricas e pobres.” As barreiras organizacionais a que Cida se refere se aplicam igualmente ao meio artístico, por exemplo, quando mencionadas as assimetrias entre Di Cavalcanti e Heitor dos Prazeres: marcadores de suas diferenças estão nos recortes de raça, classe e relações sociais.

 

Na Rua Batinga, as casas e seus cômodos, compostos de cobogós, pisos, postes, cercas vivas e cadeiras metálicas, estabelecem entre as pinturas de Fidelis conexões dando a sensação de vizinhança. Embora aborde elementos do cotidiano aparentemente banais, o artista desafia uma iconografia frequentemente associada à subalternidade. Ao inverter a lógica imagética e apresentar momentos ociosos na vida de jovens protagonistas negros, reunidos em um mesmo contexto social, Fidelis amplia a representação desses indivíduos, especialmente no âmbito artístico. Essa abordagem não apenas celebra o direito à subjetividade, mas amplia as experiências e seu imaginário dentro de uma comunidade revigorada. 

 

* Marca de Tasha & Tracie: Expensive Shit.

 

BIBLIOGRAFIA

 

ALEIXO, R. Pesado demais para a ventania. São Paulo: Todavia, 2018.

 

BENTO, C. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

 

FIDELIS, V. H. C. B. Aproximações às representações negras na história da arte brasileira. 2022. 104 f. Trabalho de conclusão de curso (Graduação em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022. Disponível em: http://tfg.fau.usp.br/victor-henrique-da-cruz-bueno-fidelis/. Acesso em: 15 out. 2024.

HOOKS, B. Tudo sobre o amor. São Paulo: Elefante, 2021.

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